Política
A Última cartada
Empacado nas pesquisas e perigando ser derrotado no primeiro turno, Bolsonaro aposta todas as fichas na difusão em massa de fake news


Em meados de setembro, viralizou nas redes sociais um vídeo em que os apresentadores do Jornal Nacional, William Bonner e Renata Vasconcellos, expõem o resultado de uma pesquisa eleitoral na qual o presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição pelo PL, estaria liderando as intenções de voto com 46%, na frente do ex-presidente Lula, do PT, que teria 31%. As vozes dos dois jornalistas são praticamente idênticas às originais, a leitura labial idem, mas as informações são falsas. A adulteração foi possível graças a uma técnica com base na Inteligência Artificial que deu origem ao chamado deepfake. Esse recurso deve ser a bala de prata de Bolsonaro para tentar reverter a grande desvantagem eleitoral e angariar votos na reta final da campanha, uma aposta para levar a disputa para o segundo turno.
De fato, lançar mão da desinformação parece ser a última cartada do ex-capitão, uma vez que não deram certo a farra com dinheiro público para turbinar o Auxílio Brasil, a redução do preço dos combustíveis nem a derrama de recursos para atender ao orçamento secreto, iniciativas claramente eleitoreiras. A tentativa de demonizar Lula junto ao eleitorado evangélico também teve efeito limitado. Da mesma forma, o projeto golpista de Bolsonaro não angariou força suficiente para se consolidar, restando-lhe apenas a mentira ou meias-verdades como alternativas.
Os deepfakes emergem como nova ameaça nas eleições deste ano
O falseamento do vídeo do Jornal Nacional é apenas uma mostra do que deve acontecer nos próximos dias, uma repetição da tática utilizada em 2018, quando houve um esquema de compartilhamento em massa de notícias falsas por aliados de Bolsonaro e financiado por empresários às vésperas do primeiro turno. A expectativa é de que haja uma enxurrada de materiais falsificados com o recurso do deepfake e da utilização do TikTok, plataforma capaz de introduzir mudanças em vídeos que se tornam imperceptíveis quando o material é compartilhado em outras redes sociais. “A gente esperava que o deepfake tivesse uma ascendência superior nos últimos meses, mas só agora constatamos um uso maior. A preocupação é de que isso se torne ainda mais agressivo nestes dias que estão faltando para a eleição”, diz Ana Regina Rego, professora da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e coordenadora da Rede Nacional de Combate à Desinformação. Ela explica que a chinesa TikTok é uma plataforma fácil de ser manuseada, o que favorece a disseminação de fake news. “No TikTok, o vídeo fica marcado como adulterado, mas, quando ele corre para um aplicativo de mensagem, como o WhatsApp, perde essa marcação e, a partir daí, o risco é muito maior de que essa desinformação alcance um grande número de pessoas.”
O possível aumento de engajamento de notícias falsas às vésperas do primeiro turno, na verdade, vai dar continuidade a um esquema iniciado antes mesmo das eleições de 2018, e que foi exaustivamente utilizado no governo de Jair Bolsonaro, que tem a mentira como marca registrada. Exemplo disso foi o discurso do presidente na Assembleia da ONU, em Nova York, na terça-feira 20, e da postura que adotou no auge da pandemia da Covid-19, quando a desinformação reinou abertamente. Não está sendo diferente no período eleitoral. Um levantamento realizado no primeiro mês de campanha pelo Radar Aos Fatos, em 578 comunidades do Telegram e 285 grupos do WhatsApp, revelou que links de sites bolsonaristas foram compartilhados ao menos 40.796 vezes. São páginas na internet com aparência jornalística, mas com textos e vídeos pautados pela desinformação e propaganda. Helena Martins, professora da Universidade Federal do Ceará e membro do Observatório das Eleições, chama atenção para o impulsionamento utilizado pelas redes do ex-capitão para turbinar as mensagens falsas. Ela acredita que essa estratégia deve ganhar mais força nos próximos dias e que a campanha de Bolsonaro deve tentar criar um fato novo para disputar o voto dos indecisos.
“Numa leitura mais ampla, a desinformação não se dá apenas com mentiras. Existe um ambiente informacional conturbado, de agressividade, de falsos discursos, que favorece determinada visão política. Sem dúvida, este é o período em que a gente precisa ficar muito atenta, porque vão atuar naquela desconfiança, numa fake news que tenha a ver com a realidade, mas que gere dúvidas, questionamentos. Que reacenda o antipetismo em algum grau.” O ambiente informacional conturbado ao qual Martins se refere são os sites de extrema-direita que atuam de forma dissimulada, produzindo noticiário com pautas reais, com uma estética muito similar aos textos veiculados pela mídia, mas os conteúdos são descontextualizados e falseados. Dentre essas páginas na internet que servem de braço do bolsonarismo, o Brasil Paralelo está no ranking dos que mais impulsionam nas redes sociais da Meta, controladora do Facebook e do Instagram: foram mais de 513 mil reais apenas no primeiro mês de campanha.
“O financiamento é uma ponta do ecossistema de fake news, dentro de um ambiente de desinformação. Mas, no Brasil, a característica mais forte é a estrutura montada para a produção e disseminação de conteúdo, que é muito potente. Estamos falando de sites que têm uma organicidade de produção de conteúdo pseudojornalístico muito intensa. Esse conteúdo é primordial porque dialoga com as pessoas, toca na emoção. Isso é muito efetivo, cria uma predisposição a determinadas mensagens e indisposição a outras. Há uma série de questões e de temas sendo trabalhada nesses conteúdos que transmitem uma determinada visão de mundo. Ou seja, as fake news são construídas a partir de crenças, valores e certezas que todos nós temos”, analisa a professora Eliara Santana, pesquisadora do Observatório das Eleições e do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.
Lula busca conter os danos das mentiras espalhadas pelas milícias bolsonaristas aos evangélicos. Um vídeo do Jornal Nacional foi adulterado para divulgar o resultado de uma falsa pesquisa – Imagem: Ricardo Stuckert e Reprodução/TV Globo
A capacidade de produzir mensagens que mexem com o emocional das pessoas é facilmente reconhecida nas milícias digitais que compõem o gabinete do ódio bolsonarista. Uma das mais recentes investidas da campanha de Bolsonaro foi a criação e o impulsionamento de um site com ataques ao ex-presidente Lula, denominado Lulaflix. Embora o PT tenha entrado com uma ação junto ao TSE para retirar a página do ar e pedir o pagamento de multa por parte dos responsáveis, o tribunal manteve o funcionamento do site que é um verdadeiro mosaico com textos, fotos e vídeos contra o petista. O TSE proibiu apenas o impulsionamento da página.
Além de controlar sites pseudojornalísticos, o gabinete do ódio paga falsos apoiadores do presidente para encenar no cercadinho do Palácio da Alvorada, fazendo perguntas ensaiadas ao presidente, que, no momento da abordagem, já está com a resposta na ponta da língua. Foi o que aconteceu com o publicitário Beto Viana, que confessou à Folha de S.Paulo ter sido contratado pelo Foco do Brasil, canal bolsonarista com mais de 2,9 milhões de inscritos, para fazer esse serviço (leia mais à pág. 6).
A campanha de Lula espera uma nova ofensiva de desinformação na semana que antecede o pleito
Um segmento que tem muita aderência ao apelo emocional e é seduzido com mais facilidade pelas notícias falsas é o evangélico, um dos setores onde o presidente Bolsonaro aparece mais bem posicionado nas pesquisas. Desde 2019, o Coletivo Bereia realiza um monitoramento em ambientes digitais cristãos – católicos e evangélicos –, acompanhando sites gospel e mídias sociais de personagens do mundo religioso, incluindo influenciadores, artistas e políticos. Na eleição deste ano, a fake news mais recorrente ente os evangélicos é a da cristofobia, relacionando Lula ao demônio, acusando-o de, se eleito, perseguir os cristãos e fechar templos. Também consta nesse rol a tese de que um cristão não pode ser progressista. “Colocam um sentimento de culpa em pessoas que se identificam com a esquerda. Basta alguém defender os direitos humanos ou pautas progressistas para ser acusada de cometer pecado”, explica Magali Cunha, uma das coordenadoras do Bereia. Ela acrescenta que esse movimento foi muito forte em 2018, teve espaço também no pleito de 2020, mas vem perdendo adesão nas eleições deste ano. “Perde força à medida que demandas como a sobrevivência se colocam mais fortes, especialmente entre mulheres, que são as cuidadoras das famílias e veem que a destruição de um lar não é só pela moralidade. Enxergam isso pelo desemprego, pelo alimento caro, pela falta de saúde, a Covid que matou tanta gente…”
“As pessoas de fé são marcadas por uma série de afirmações e ilações que são falsas, baseadas não em fatos pretéritos, mas em expectativas futuras. Quando vem alguém e fala ‘Lula vai fechar igrejas’, é uma fake news situada numa zona cinzenta onde você começa a fazer umas comparações. É mais difícil de combater, porque você tem de vir à tona e dizer ‘eu não vou fechar igreja’. Daí, você já perdeu a briga, porque a briga é pautar esses temas. E se você não fala nada, parece que está passando recibo. Um dos argumentos que tem surgido entre os evangélicos é que Bolsonaro não é perfeito, mas foi o escolhido de Deus para este momento. É como se você não precisasse ter um candidato perfeito, mas votar naquele que está mais próximo das suas convicções. Isso não é necessariamente fake news, é desinformação. É uma coisa completamente fora de lugar, mas que gera um nível de engajamento emocional e prático muito grande nas redes. Tentam apelar para uma dimensão do simbólico e do sensível”, opina João Brant, diretor do Instituto Cultura e Democracia e coordenador do projeto Desinformante.
Em meio ao vasto léxico bolsonarista, uma avalanche de fake news requentadas
Apesar do vasto léxico bolsonarista, em se tratando de desinformação e discurso do ódio, muitas das notícias falsas que circulam atualmente são requentadas de eleições passadas. O novo é realmente a utilização do deepfake e de plataformas como TikTok e Kwai, preferidas do público jovem. O fantasma do comunismo, comparações entre Lula e os governos da Venezuela, Cuba e Nicarágua, ataques às urnas eletrônicas e ao ministro Alexandre de Moraes e de que Lula e o PT têm ligação com o PCC continuam pautando as notícias falsas. Nos últimos dias, circulou nas redes sociais mais uma fake news requentada, um áudio de 2017 no qual o ex-presidente Lula estaria falando ao telefone com um interlocutor, sugerindo “acabar” com o ex-ministro Antonio Palocci. O diálogo mostra Lula irritado diante de uma falsa delação premiada do seu ex-assessor.
Embora reconheçam que a indústria da desinformação continua agindo em grande escala, os pesquisadores acreditam que a população está mais atenta, na comparação com as eleições de 2018. Ao mesmo tempo, o Judiciário está mais preparado para coibir a propagação de fake news e as plataformas estão implantando políticas mais rígidas em relação aos conteúdos que postam, apesar de não abolirem por completo a tática cada vez mais comum no mundo político. “Em parte, temos uma sociedade vacinada e temos dois candidatos na eleição presidencial muito conhecidos. Isso faz com que o efeito das fake news acabe sendo menor pelo nível de conhecimento que as pessoas têm, pela dificuldade de colar na imagem dos candidatos. Mas isso não significa que a gente tenha um volume menor de desinformação que em 2018”, explica Brant.
O projeto golpista de Bolsonaro não angariou força suficiente para se consolidar – Imagem: Andressa Anholete/Getty Images/AFP
“É claro que tudo pode acontecer, mas o estrago que as fake news fizeram em 2018 talvez não seja tão grande este ano. Vemos, por exemplo, que a intenção de voto é muito mais estável, mesmo com muita mensagem falsa circulando de qualquer maneira”, diz Frederico Batista Pereira, pesquisador da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, que faz parte de um grupo de pesquisa que acompanha a reação de eleitores diante de notícias falsas. “Eu ficaria surpreso se houvesse uma mudança de cenário sem que um evento grande acontecesse. Tenho minhas dúvidas se essa propagação de fake news em massa tem esse tamanho todo para mudar o cenário.” Para o pesquisador, a desinformação atua mais para reforçar crenças do que para virar votos, desempenham um papel para manter a base coesa, mobilizada e inflamada, sem ampliar de forma considerável seus seguidores.
Sobre a mobilização nas redes bolsonaristas, o Farol Digital – laboratório da Universidade Federal do Ceará que acompanha centenas de grupos de WhatsApp de direita –, em parceria com o Observatório das Eleições, analisou, entre os dias 6 e 8 de setembro, 231 grupos de WhatsApp de direita e verificou que houve atividade em 171, com 2.674 usuários. Foram 23.448 mensagens que circularam nesses grupos, das quais pelo menos 40% faziam menção às mobilizações do 7 de Setembro. As mensagens eram de convocação para os protestos, ameaças e autoelogio. A pesquisa revelou ainda uma grande quantidade de grupos que se dedicaram à divulgação do bicentenário da Independência, mas sem muito engajamento virtual. O Observatório das Eleições também analisou postagens sobre a data no Facebook. Fazendo um comparativo com 2021, quando na véspera do ato houve uma interação de quase 4 milhões de seguidores, este ano a participação foi de apenas 2,2 milhões. Não que seja pouca coisa, mas nitidamente os números mostram uma queda drástica na campanha de Bolsonaro nas redes.
Hoje, as fake news servem mais para manter a coesão dos apoiadores do que para virar votos, avalia pesquisador
Diante da dificuldade, o impulsionamento é uma carta na manga que a campanha de Bolsonaro ainda conta. Outra tentativa de engajamento é a programação de uma live diária que o presidente prometeu fazer nos últimos dez dias antes do primeiro turno. O TSE está de olho na disseminação de notícias falsas e o presidente da Corte e ministro do STF, Alexandre de Moraes, promete rigor com quem recorrer a essa tática. Ele vem agindo com mão de ferro contra as milícias digitais e cobrando ações das plataformas. Em março, proibiu a atuação do aplicativo Telegram no Brasil, depois de várias tentativas de diálogo com a empresa. A decisão foi revogada depois que o aplicativo retirou de circulação um vídeo de Jair Bolsonaro atacando as urnas eletrônicas. Em 2021, o ministro abriu um inquérito para investigar as milícias digitais e, em agosto deste ano, autorizou a Polícia Federal a fazer busca e apreensão contra um grupo de empresários que, pelo WhatsApp, defendia um golpe de Estado, caso Lula seja eleito.
A atuação de Moraes pode ainda estar contribuindo para enfraquecer o ecossistema que está por trás da campanha de Bolsonaro, incluindo o aporte financeiro para bancar a disseminação de fake news. Além de empresários, fazem parte desse ecossistema os sites de direita mencionados anteriormente, que recebem financiamento para espalhar informações falsas e descontextualizadas. “Na maioria das fake news, a Justiça tem dificuldade de encaixar em algum crime, mas consegue colocar na análise de propaganda eleitoral irregular, que tem multa a partir de 5 mil reais e vai subindo conforme houver reincidência. E o processo da propaganda é muito rápido. A partir da denúncia, em uma semana, em média, você já tem um resultado. Ainda que o caso suba para o TSE, ele vai ser julgado relativamente rápido. O Tribunal está maduro o suficiente para acompanhar toda essa guerra de desinformação”, salienta Volgane Carvalho, secretário-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Público, destacando a célere atuação do Ministério Público e de advogados eleitorais no combate à desinformação.
A atuação de Moraes contribuiu para enfraquecer o ecossistema da desinformação – Imagem: Arquivo/TSE
A campanha de Lula vem se preparando há muito tempo para combater a indústria da mentira encampada por Bolsonaro e se diz pronta para enfrentar a última semana de campanha antes do primeiro turno. Conta com uma equipe que monitora a circulação de notícias falsas contra o candidato e tem uma equipe jurídica que é acionada sempre que necessário. “Temos lidado com as fake news da forma como elas têm de ser enfrentadas, desmentindo quando têm alguma relevância e combatendo de forma direta. Não tiramos a campanha para ficar combatendo mentiras porque seria entrar na armadilha deles. E temos também as vacinas, que são aqueles vídeos pequenos que neutralizam todas as distorções e ataques, para que você não fique gastando energia com isso. São peças positivas que enfatizam a verdade, postadas e, muitas vezes, impulsionadas, e que cumprem o papel de neutralizar as fake news. E quando é algo ilegal, entramos na Justiça e pedimos a retirada”, destaca Edinho Silva, coordenador de comunicação da campanha de Lula.
Sobre o que esperar nesta reta final de campanha, Silva afirma que Bolsonaro vai testar aquilo que supostamente engaja mais. “A fake que pegar eles impulsionam. Eles demonstram o desespero, porque a nossa campanha tem sido muito assertiva, temos trabalhado na linha de apresentar propostas e mostrar o que é o governo Bolsonaro e quem é Bolsonaro. As pesquisas revelam uma chance real de a eleição ser definida no primeiro turno e nós não temos nenhuma dúvida de que eles vão aumentar o tom.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A Ultima cartada”
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