Política

A troca de ministros do Meio Ambiente não representa qualquer ameaça à ‘boiada’

Joaquim Álvaro Pereira Leite, apelidado de “preposto” por servidores, também herda um ministério aparelhado

Tudo igual. Os militares são chamados de volta para a Amazônia, apesar do fracasso das operações anteriores. (Foto: Estevam Rafael/VPR e MMA)
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“O casamento da agricultura com meio ambiente foi quase perfeito. Parabéns, Ricardo Salles. Não é fácil ocupar seu ministério. Por vezes, a herança que fica é uma penca de processos”, afirmou Jair Bolsonaro, um dia antes de publicar a exoneração de seu ministro. O ex-capitão não estava errado. Salles sai de cena para retardar as investigações contra ele que tramitam no Supremo Tribunal Federal e que, agora, devem ir para a primeira instância. A lista de crimes investigados é extensa e inclui acusações de contrabando internacional, advocacia administrativa, lavagem de dinheiro e improbidade administrativa.

Nessa semana, ele teve o passaporte apreendido pela Polícia Federal. Aguarda a manifestação dos dois relatores de seus processos, Alexandre de Moraes e ­Cármen Lúcia, para saber qual será o futuro das investigações. Caso não seja preso, Salles pretende candidatar-se a deputado federal por São Paulo no próximo ano. Expulso do Novo, partido pelo qual se tornou suplente de deputado em 2018, sua proximidade com o deputado federal Guilherme Mussi, dirigente do Progressistas, aponta para a filiação ao PP. A candidatura vem a calhar. Caso seja eleito, conseguirá retardar ainda mais as investigações, além de retomar o foro privilegiado.

Há ainda dois inquéritos sigilosos no Pará, abertos após uma fiscalização do Ibama ser interrompida por Salles. Neste caso, há suspeitas de vazamento de informações sigilosas e transporte de garimpeiros em aviões da Força Aérea Brasileira para uma reunião em Brasília.

Preposto de Salles, o ministro Pereira Leite foi conselheiro da Sociedade Rural Brasileira por 23 anos

O boiadeiro sai de cena, mas a boiada fica. Os números de sua gestão são aterradores. Em um ano, a Amazônia perdeu 1,5 milhão de hectares de cobertura vegetal. Desde o início do governo, as queimadas na floresta aumentaram 200%. O garimpo ilegal, sobretudo em terras indígenas, avançou 30% na pandemia, destruindo o equivalente a 500 campos de futebol em um ano. O orçamento para o meio ambiente é o menor em 21 anos.

O sucessor de Salles, Joaquim Álvaro Pereira Leite, apelidado de “preposto” por servidores, também herda um ministério aparelhado e assume o processo de militarização do sistema ambiental, que nessa semana avançou na forma de uma canetada de Bolsonaro, ao sancionar a nova operação de Garantia da Lei e da Ordem na Amazônia.

A primeira GLO, batizada de Operação Verde Brasil, terminou em abril após ter consumido, em duas fases, mais de 530 milhões de reais e apresentar poucos resultados. A quantia representa oito vezes o orçamento do Ibama para combater crimes ambientais em um ano inteiro, contratando 5 mil fiscais para o órgão que hoje possui apenas 500 e está sucateado, segundo dados da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema).

Salles tinha planos de usar parte do 1 bilhão de dólares pleiteado ao governo de Joe Biden para combater o desmatamento na Amazônia no pagamento de policiais militares da Força Nacional de Segurança Pública, sob a direção do coronel Antônio Aginaldo de Oliveira, casado com a presidente da Comissão de Meio Ambiente na Câmara, Carla Zambelli. A deputada, inclusive, atua para acelerar a tramitação do PL 2.689/19, de autoria do deputado bolsonarista Coronel Tadeu.

Batalha. Os povos indígenas lutam contra os projetos que ameaçam os seus territórios em nome do “progresso”. (foto: Gabriel Paiva/PT na Câmara)

O projeto prevê que policiais militares passem a integrar o Sistema Nacional do Meio Ambiente. Na prática, isso esvazia ainda mais as funções do Ibama e passa aos PMs funções como concessão de licenças ambientais, embargos de propriedades rurais e gestão de unidades de conservação. Caso aprovado, especialistas temem o surgimento de uma espécie de milícia ambiental. “Sua aprovação pode ferir de morte o Sisnama com a paulatina desestruturação da atuação de órgãos reconhecidamente capazes de combater o crime ambiental por meio de ações de regulação dos recursos como o licenciamento ambiental”, informou nota da Ascema.

Se a militarização caminha a passos largos, o aparelhamento do ministério também inviabiliza qualquer tentativa de tentar mudar os rumos da (anti)política ambiental. Um levantamento feito por ­Carta­Capital dá um panorama de como Salles estruturou o ministério. Além de contar com 103 policiais militares – incluindo agentes da Rota, a violenta tropa de elite da polícia paulista –, a maior parte dos indicados é de investidores, ruralistas, defensores dos agrotóxicos e integrantes de grupos de extrema-direita.

 

Atual secretário de Áreas Protegidas, o empresário André Pitaguiri Germanos é um velho conhecido de Salles desde os tempos do Endireita Brasil, movimento fundado por eles em 2006. Formado em Administração e especializado em mercado financeiro, Germanos só não tem experiência na área para a qual foi nomeado. Salles também “carregou” amigos do governo de São Paulo, da época em que ocupou a Secretaria de Estado­ de Meio Ambiente na gestão de Geraldo Alckmin. Gastão Donati, ex-assessor do governador tucano e depois coordenador dos Parques Urbanos do estado, é agora secretário-adjunto no Ministério do Meio Ambiente.

Quase mil propostas na Câmara ameaçam o meio ambiente, como a liberação do garimpo em terras indígenas

Produtor rural, Antonio Carlos Tinoco Cabral foi nomeado em janeiro secretário-adjunto de Qualidade Ambiental da pasta, cargo que prevê, dentre outras atribuições, a gestão de produtos químicos e perigosos, entre eles os agrotóxicos. Ligado ao setor ruralista de criação de gado e cavalos, Cabral também traz em seu currículo a especialização em “controle de pragas” em plantações. Vale lembrar que o governo Bolsonaro liberou 967 agrotóxicos em dois anos, sendo 25 considerados extremamente tóxicos para a saúde humana pela Anvisa e 251 muito ou altamente perigosos para o meio ambiente.

Soma-se a eles o olavista Evaristo Eduardo de Miranda, chefe da Embrapa Territorial. Há 40 anos no órgão, ele atua como uma espécie de guru responsável pelos discursos do ex-ministro e por criar teses estapafúrdias, como a do “boi bombeiro”, usada por Salles e Tereza Cristina, a ministra da Agricultura, para justificar as queimadas no Pantanal. Segundo os doutos, elas seriam menores se o gado comesse a grama do bioma. Da mesma forma, seriam menores se os pecuaristas da região não ateassem fogo na mata para abrir pastagens, mas isso não costuma ser lembrado pela turma. Evaristo chegou a ser sondado por Bolsonaro para ser o ministro do Meio Ambiente antes de Salles.

Se dentro da pasta o prognóstico é ruim, no Congresso é ainda pior. Um levantamento da Frente Parlamentar em Defesa do Meio Ambiente na Câmara aponta para quase mil propostas de lei que visam afrouxar regras de fiscalização, ampliar presença de militares, liberar exploração de áreas protegidas e prejudicar o meio ambiente. A maior parte dos projetos versa sobre terras indígenas, agrotóxicos e licenciamento ambiental, segundo o deputado Rodrigo Agostinho, do PSB. Os últimos dias, por sinal, foram marcados por protestos de povos originários em Brasília contra o PL 490, que muda as regras para a demarcação de terras indígenas. Esta semana ele passou na Comissão de Constituição e Justiça e agora segue para plenário. A proposta permite contrato entre índios e não índios para atividades econômicas e cria um “marco temporal” para as terras consideradas “tradicionalmente ocupadas por indígenas”, exigindo a presença física dos índios em 5 de outubro de 1988.

Outros dois focos de apreensão é o PL 191, que libera o garimpo nas terras indígenas, e o PL 1.205/2019, de autoria do deputado bolsonarista Pinheirinho, que propõe alterações nas zonas de amortecimento e nos corredores ecológicos das unidades de conservação. A família do parlamentar, diga-se de passagem, possui terras na Zona de Amortecimento­ do Parque Nacional da Serra do Rola ­Moça, em Minas Gerais. No que depender das presidentes da CCJ, Bia Kicis, e da Comissão do Meio Ambiente, Carla Zambelli, todas essas propostas estariam aprovadas.

Menos ideológico que o antecessor, Pereira Leite não deve interferir nos rumos da política ambiental. Amigo de Salles, foi o então ministro quem o levou para o governo, depois que os dois se aproximaram na Sociedade Ruralista Brasileira, que apoia a bancada ruralista na Câmara. Pereira Leite foi por 23 anos conselheiro da entidade, onde ­Salles atuou como advogado.

Berrante. Na Comissão de Meio Ambiente, Zambelli acelera a tramitação da “boiada”. (FOTO: Pablo Valadares/Ag.Câmara)

O novo ministro entrou para o governo como diretor do Departamento Florestal e, posteriormente, assumiu a recém-criada Secretaria da Amazônia. O ruralista comandou um órgão totalmente esvaziado, criado com o único objetivo de acalmar os ânimos de países e entidades estrangeiras preocupados com a devastação do bioma.

Dois dias depois de assumir a pasta, ele foi alvo de manifestação de indígenas, que fecharam a Rodovia dos Bandeirantes, pedindo sua saída. O motivo? Pereira Leite e seus familiares disputam um pedaço da Terra Indígena Jaraguá, na Zona Norte da capital paulista. Há, inclusive, relatos de que capangas da família teriam queimado parte das aldeias dos indígenas, segundo documento da Funai obtido pela BBC Brasil.

CartaCapital conversou com servidores que trabalharam diretamente com ele. “Se eu deixar de fazer isso eu vou ser preso? Se sim, eu faço”, disse certa vez, em tom jocoso, na frente de técnicos da Secretaria da Amazônia. A frase marcou quem presenciou e que conhecia o método­ de trabalho seguido à risca pelos indicados de Salles. “Nem chamamos mais de assédio moral, virou um assédio institucional”, relata uma servidora. “Ele topou assumir a secretaria fake, que desestruturou toda a lógica da conservação ambiental. Foi uma gestão sem diálogo e sem transparência.”

Publicado na edição nº 1164 de CartaCapital, em 1º de julho de 2021.

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