Política
A sedução da barbárie
Democratas e progressistas têm sido incapazes de oferecer uma alternativa ao espírito destrutivo da direita radical, diz William Allchorn


Ao longo dos séculos, o extremismo adapta-se a novos contextos políticos e sociais e se alimenta de crises profundas. De regimes déspotas no século XX à ascensão de movimentos radicais impulsionados pelas redes sociais, o fenômeno está longe de ser um desafio local, mas global, diz William Allchorn, especialista em movimentos de direita radical no mundo e pesquisador sênior do International Policing and Public Protection Research Institute, em Londres. “Há uma grande desconexão entre os partidos de esquerda ou social-democratas e suas bases”, afirma o acadêmico, defensor da adoção de políticas de letramento midiático para enfrentar as fake news turbinadas pelas big techs.
“A base da pirâmide quer simplesmente explodir o sistema”
CartaCapital: Quais as semelhanças entre a extrema-direita atual e o nazifascismo das décadas de 20 e 30 do século passado?
William Allchorn: Estamos em um período que alguns chamariam de policrise. Temos uma crise ambiental, estamos em meio a guerras e ainda não nos recuperamos totalmente da pandemia. Esse, aliás, é outro tópico para discutirmos, a possibilidade de os indivíduos se tornarem mais radicais após um período de isolamento. Existem algumas semelhanças entre os dois momentos, mas o que ocorre agora são debates sobre se vivemos uma crise econômica, privação, e algumas das idiossincrasias do capitalismo, como a globalização, ou se assistimos a mudanças repentinas na cultura e mudanças demográficas. Também observamos até que ponto não se trata de um fenômeno da classe baixa ou da classe trabalhadora, mas da classe média. São cidadãos com meios de vida e empregos que se sentem ameaçados por uma mudança radical, étnica ou migratória, entre outras. Há um certo grau de razão na sensação de insegurança e a direita geralmente dá um pouco mais de coragem ou uma resposta básica. Existe essa ideia de que a direita é sempre mais competente quando se trata de economia do que a esquerda, que até recentemente estava mais focada em questões culturais e progressistas, mas agora o oposto parece verdade. Muitos partidos de extrema-direita e populistas de direita nos Estados Unidos e na Europa moveram-se para posições econômicas muito à esquerda: são protecionistas e apoiam formalmente empregos sindicalizados. E o tipo de cultura de direita tornou-se ainda mais pronunciado, pois os cidadãos se tornaram mais polarizados em seus espaços online. O que torna as coisas ainda mais interessantes é o fato de que esses movimentos, supostamente da classe trabalhadora, são na verdade muito elitistas e isso levanta questões sobre o quanto realmente são capazes de oferecer soluções para os problemas que denunciam.
CC: A dificuldade de comunicação dos partidos progressistas joga água no moinho da extrema-direita?
WA: Há uma grande desconexão entre os partidos de esquerda ou social-democratas e suas bases, algo que ocorre há 20 ou 30 anos, ao menos no Reino Unido. Vimos isso com o crescimento de um partido neofascista, o Partido Nacional Britânico, nos anos 2000. Essencialmente, eles conseguiram posicionar-se como uma alternativa autêntica. Eles se apresentaram como o Partido Trabalhista no qual sua mãe e seu pai poderiam ter votado, e estavam totalmente centrados em questões locais, construindo uma base de apoio com temas do cotidiano, assuntos considerados importantes pelos eleitores. Em 2016, assistimos à primeira eleição de Donald Trump e o Brexit no Reino Unido, onde há esse tipo de mudança entre os partidos, uma mentalidade mais cosmopolita contra aqueles que estavam talvez do lado de Trump ou do lado do “Leave” no referendo do Brexit, que eram mais, vamos dizer, comunitários. Eles eram cidadãos de algum lugar, em vez de nenhum lugar, e isso levou ao aumento do apoio de massa a esses partidos da direita radical. Acontece cada vez mais porque a base da pirâmide econômica simplesmente quer explodir o sistema.
A AfD está perto de conquistar o poder na Alemanha – Imagem: Sean Gallup/Getty Images/AFP
CC: Porque não confiam mais nas instituições, certo?
WA: Exatamente. Eles querem um tipo de radicalismo. Não querem mais gente que se apresenta como político muito profissional e bem polido. Não confiam mais neles, mas em alguém que fala a sua língua de uma maneira muito populista, alguém que apresenta soluções fáceis para problemas difíceis, e isso é muito atraente.
CC: Por que a obsessão da extrema-direita com a imigração?
WA: É um fenômeno complexo, enraizado em uma mistura de estratégia política, ansiedades culturais e medos econômicos. Os grupos de extrema-direita frequentemente veem a imigração como uma ameaça à identidade cultural, à língua ou às tradições de um país. Eles retratam os imigrantes como forasteiros que não conseguem integrar-se e que minam as formas de vida “nativas”. Muitos movimentos de extrema-direita também são etnocêntricos, promovendo a dominação de uma etnia específica. Imigrantes, especialmente aqueles que são raciais ou culturalmente diferentes, são vistos como incompatíveis. Além disso, culpar os imigrantes oferece uma solução fácil para problemas complexos. Isso desvia a atenção de questões sistêmicas, como a desigualdade econômica ou ineficiências governamentais, transferindo a culpa para um grupo externo. A imigração também é uma questão altamente emotiva, e o medo do “outro” é uma ferramenta poderosa para angariar apoios. Retratar os imigrantes como um problema é uma forma de os partidos de extrema-direita criarem um inimigo comum para unificar a sua base.
Hitler, no início, também era visto como um outsider que acabaria domado pelo sistema – Imagem: Arquivo/AFP
CC: O que nomes como os de Jair Bolsonaro, Javier Milei, Trump e Giorgia Meloni realmente representam? Podemos imaginar no futuro um novo Adolf Hitler?
WA: Precisamos voltar mais no tempo, bem antes de Hitler, para fazer os paralelos corretos. Platão alertava na antiguidade sobre como a democracia pode transformar-se em um jogo de demagogos, em que líderes únicos são elevados a um pedestal e recebem uma missão de poder quase sem controle. Se olharmos para a esfera europeia mais recentemente, um sinal de alerta é a Hungria e também a Polônia, antes da mudança de governo sob o Partido da Lei e Justiça. Obviamente, Viktor Orbán, na Hungria, ainda está lá, mas também o Partido da Lei e Justiça na Polônia foi uma erosão dos freios e contrapesos e das instituições liberais, como os tribunais e outros cargos estatais. Até certo ponto, esses freios e contrapesos ainda estão presentes nos EUA, mas podemos ver os riscos e, de forma ampla, o desmantelamento do Estado. Se pensarmos na América Latina, bem, muito de Javier Milei na Argentina é estruturado em torno dessa ideologia anarcocapitalista, fortemente libertária que só quer ver o Estado atuando em circunstâncias mínimas em termos de segurança básica, nada em termos de programas de bem-estar ou educação, tudo deixado para o cidadão, o que talvez seja outro conjunto de ameaças que podemos discutir.
“O medo do outro é uma ferramenta poderosa para angariar apoio”
CC: Qual a responsabilidade das big techs na ascensão extremista?
WA: Elas fragmentaram nosso ambiente midiático a tal ponto que os usuários simplesmente assinam as notícias que concordam com sua posição de valores, em vez de buscar novas fontes que possam ser diferentes ou mais diversas. De forma ampla, há uma balcanização do cenário das redes sociais e essa radicalização no mundo virtual é muito mais rápida do que na vida real. Percebe-se até na jornada de figuras como Elon Musk, que de certa forma “engoliu a pílula vermelha” do movimento MAGA (Faça a América Grande de Novo, na sigla em inglês) online e transformou o X, o antigo Twitter, em um inferno digital. Esse amplo movimento MAGA digital tem sido importante no sentido de entrincheirar os eleitores em bolhas. Diria, de maneira bastante distópica, que não há mais um centro, é preciso escolher um lado, e isso se aplica tanto às formas políticas de extrema-esquerda quanto às de extrema-direita.
Órban, na Hungria, Bolsonaro e Milei, no Cone Sul: há sempre um grau de caricatura – Imagem: Evaristo Sá/AFP e Alan Santos/PR
CC: A democracia resistirá? O que fazer?
WA: Em termos de afastar os cidadãos do extremismo, no sentido da prevenção, primeiro é essencial alfabetizar digitalmente de forma crítica e ampla a população. Obviamente, há muitas fake news e desinformação espalhadas, então acho que ser capaz de checar a fonte e tentar contextualizar de onde vem aquela informação é bastante central. Também acredito que abordagens mais de baixo para cima, fora das estruturas de partido tradicionais, também são necessárias. É importante ter um centro democrático forte, onde os eleitores possam reunir-se, discordar de forma amigável e ter uma retórica e conversas responsáveis, pois o que realmente impulsiona o engajamento online é discordar e criar um espetáculo, o que é muito diferente de como os indivíduos precisam sentir-se realizados na vida real. A Alemanha é o tipo de padrão-ouro, com sua forma mais militante de democracia para impedir movimentos políticos extremos ou radicais. Na Lei Fundamental Alemã há medidas que dificultam a ascensão desses partidos e houve algumas mudanças recentes, especialmente em relação à resistência contra o AfD (Alternative für Deutschland). Além disso, os partidos devem pensar em como oferecer alternativas à extrema-direita aos sentimentos da população em relação às idiossincrasias do capitalismo tardio. Essa é uma questão interessante, pois talvez as pessoas não tenham espaço mental para realmente pensar sobre essas coisas, e como você comunica também é outra camada de complexidade. De qualquer forma, está mais do que na hora de os partidos de esquerda e os social-democratas pensarem sobre o que poderia ser, em vez de simplesmente refletir as mesmas políticas sobre imigração etc., e falarem como se fossem movimentos de direita, querendo ver e fazer o mesmo. Eles precisam saber o que querem possuir e onde querem posicionar-se antes de podermos talvez ver quais serão suas respostas, pois Jean-Marie Le Pen disse: “As pessoas sabem qual é o original e não vão afastar-se do original”. Então, precisamos encontrar uma alternativa. •
Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A sedução da barbárie’
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