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“A saída é uma articulação internacional”, diz historiadora e política

Silvia Capanema é conselheira departamental de Seine-Saint-Denis (espécie de deputada estadual) pelo Partido Comunista Francês

A deputada francesa Silvia Capanema (Foto: Reprodução/Facebook)
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Desde janeiro deste ano, a professora franco-brasileira Silvia Capanema, 39 anos, preside a recém criada RED-Br (Rede Europeia pela Democracia no Brasil). Essa associação de professores universitários, militantes e artistas, criada na França e em formação em diversos países europeus, se engajou na denúncia de atos contra a democracia no Brasil, na defesa de pessoas ameaçadas por suas idéias e posições políticas.

“É a luta pela liberdade do Lula, porque o processo foi totalmente irregular. É também pelo fim desse governo. O objetivo é a retomada do poder pelas forças de transformação social”, resume a presidente da RED-Br.

Silvia Capanema, eleita conselheira departamental de Seine-Saint-Denis (espécie de deputada estadual) pelo Partido Comunista Francês, cargo que acumula com o de vereadora de Saint-Denis, cidade da banlieue parisiense, comemora a primeira vitória da Rede Europeia pela Democracia no Brasil: a aprovação pelo Conseil de Paris da atribuição do nome de Marielle Franco a uma rua de Paris.

“Aqui na França, por outras razões, sem o processo sujo do Brasil, também se vive uma crise da democracia. Os coletes amarelos reivindicam maior participação e uma transformação democrática”, diz.

Seu salário de política eleita equivale a dois salários mínimos e meio e tem direito a apenas um funcionário, além de uma secretária e um pool de motoristas. Nada a ver com a orgia de funcionários que dão lugar a escândalos de laranjas, como o do ex-motorista do filho de Bolsonaro.

Tendo um dos mais sólidos sistemas de proteção social da Europa, a França reserva a maior parte do seu orçamento para a Educação, gratuita e universal. Em 2019, são 51,7 bilhões de euros, seguido do orçamento da Defesa (35,88 bilhões de euros) e em terceiro lugar do orçamento da Solidariedade, Inserção e Igualdade de Oportunidades (20,93 bilhões).

Do nascimento até a terceira idade, os franceses têm no Estado uma proteção para os principais problemas da vida.

“Os países que os brasileiros admiram na Europa têm um sistema social baseado na solidariedade e no apoio aos menos favorecidos. Foram conquistas de lutas sociais”, diz Silvia, que vê a política como uma função, não como profissão. “Quando eu deixar a política, vou continuar como militante na vida associativa, que é muito ampla aqui e é subsidiada pelos poderes políticos.”

CartaCapital: No dia do lançamento em Paris da RED-Br, em janeiro, Vladimir Safatle disse que era necessário formar uma nova Internacional para combater a extrema direita no mundo inteiro. O que você pensa disso ?

Silvia Capanema: O RED-Br tem essa vocação de defender a democracia reforçando os contra-poderes. Democracia é liberdade, diversidade política. Quando o Brasil tem um presidente que quer eliminar a oposição isso é perigoso. Isso é a essência fascista, não tem nada de novo nesse mundo. Daí a necessidade de criar uma rede de resistência. Queremos ir o mais longe que pudermos na rede internacional antifascista. E o mais longe é também a luta por uma rua Marielle Franco em Paris, já aprovada pelo Conseil de Paris. É a luta pela liberdade do Lula porque o processo foi totalmente irregular. É também pelo fim desse governo. O objetivo é a retomada do poder pelas forças de transformação social.

CC: Durante o processo eleitoral, o candidato preferido nas pesquisas foi preso. Posteriormente, o juiz que o prendeu virou ministro. Poder-se-ia imaginar que essa eleição venha a ser anulada? A esquerda participou de uma fraude? 

SC: Sim, participamos de uma fraude. Mas o que fazer diante de tudo isso ? Não sei se haveria maturidade e resistência suficientes para recusar o processo. Denunciamos isso dizendo que “eleição sem Lula é fraude”. O próprio golpe foi um impeachment irregular. Tinha de ter sido revertido ali. Mas agora ele foi eleito. Temos que esperar. A hora de reverter vai chegar. Essa questão democrática não se vive somente no Brasil. Aqui na França, por outras razões, sem o processo sujo do Brasil, também se vive uma crise da democracia. O que os coletes amarelos reivindicam? Tem a questão econômica e a questão democrática, eles querem maior participação do povo nas decisões. A democracia tal qual existe serve aos poderosos e aos ricos. A vontade popular desaparece. No Brasil vai ter que acontecer alguma coisa…

CC: Como no Brasil vai ser construída uma alternativa a Bolsonaro ? Como a esquerda vai reemergir de um processo em que ela foi totalmente esmagada? Onde está a saída?

SC: A saída está numa articulação internacional.

CC: A RED-Br tem articulação com outros países?

SC: Temos contatos com outros países e a ideia é que professores universitários, artistas e militantes políticos façam em vários países da Europa o que foi feito aqui na França. Nos inspiramos no que o americano James Green faz, mas a nossa rede tem vocação de atuar concretamente e por isso lutamos pela rua Marielle Franco em Paris. Já tem uma RED-Br na Suíça, a Bélgica está articulando, na Itália já temos contato. Queremos que os comitês dos diversos países tenham autonomia para organizar os eventos e sua própria dinâmica. Temos pessoas de diversas tendências da esquerda porque a democracia pela qual lutamos é a que tem como objetivo o progresso social e a igualdade. Temos pessoas do Partido Comunista, do Partido Socialista, da France Insoumise, temos ecologistas, outros sem nenhum vínculo partidário. Todos juntos unidos como uma frente antifascista das esquerdas e das forças de progresso social e humano. Ligas de direitos humanos e de defesa dos direitos LGBT também fazem parte desse grande movimento pela democracia no Brasil.

CC: Esse grupo de professores universitários que estão à frente da RED-Br já pensa em ajudar a acolher futuros exilados políticos como Marcia Tiburi e Jean Wyllys, ameaçados de morte no Brasil?

SC: Tivemos alguns alertas, mas não temos condição de dizer que vamos receber os exilados aqui. A legislação francesa é bastante restrita nesse assunto. Estamos articulando e tendo notícias de outros intelectuais que vão ter que deixar o Brasil. Parece que já há seis pessoas.

CC: A destruição do PT é o objetivo principal desse grupo que tomou o poder. Sergio Moro vai fazer tudo para colocar o PT na ilegalidade, como foi feito com o PCB em 1947.

SC: Essa é a tese da historiadora Maud Chirio. Ela pensa que eles querem colocar na ilegalidade o PT e o MST. Penso que eles vão tentar isso.

CC: A classe média e a direita brasileira sempre combateram o Bolsa Família e os outros programas sociais como as cotas nas universidades. Como eleita pelo Departamento de Seine Sant-Denis, onde o nível de vida é o mais baixo da França, você conhece muito bem os programas sociais que existem em nível nacional para os franceses mais necessitados. Quais são os principais?

SS: É impressionante o sistema social francês, um dos mais sólidos da Europa. Ele atua muito bem na periferia. A escola é em horário integral e inteiramente pública, do maternal até a universidade. Os professores são funcionários da Education Nationale, dirigida totalmente em nível nacional pelo Ministério da Educação. O orçamento da Educação é o primeiro do país, seguido da Defesa.

Para as crianças, a família paga a cantina (almoço) de acordo com a renda familiar. Existem centros de lazer para quando os pais trabalham e precisam deixar os filhos fora do horário escolar. As famílias têm um complemento de renda que depende da renda familiar, uma universalização da Bolsa Família. Existe uma ajuda da CAF para pagar o aluguel das famílias, além do parque de habitação social. Existe a complementação de renda dos idosos, redução nos transportes para idosos e família numerosa, apartamentos para estudantes em cidade universitária, além de bolsa para os estudantes que têm que pagar aluguel. A saúde é totalmente gratuita, universal e de qualidade. Uma mulher na gravidez é totalmente assistida e faz um parto que no Brasil se chama “humanizado”, totalmente público e gratuito.

É preciso frisar que as despesas de saúde são hoje cobertas 70% pelo Estado. Já foram 100% cobertas, mas as medidas neoliberais já pioraram alguns pontos do sistema social francês. Por isso é preciso resistir e reagir. Pois houve perdas. Já se percebe uma queda do nível de vida com o neoliberalismo e a desindustrialização do capitalismo francês nos últimos 20 ou 30 anos, que concentraram a renda e aumentaram a pobreza. Os coletes amarelos surgem nesse contexto.

CC: O que você acha das críticas que eram feitas no Brasil ao Bolsa Família? 

SC: Totalmente sem conhecimento do que acontece no mundo. Falta cultura. Os países que eles admiram na Europa têm um sistema social baseado na solidariedade e no apoio aos menos favorecidos.  Foram conquistas de lutas sociais. Na França, o trabalhador tem 35 horas semanais e 5 semanas de férias pagas, com uma aposentadoria integral para os professores universitários, como nós. O trabalhador tem dois anos de seguro-desemprego quando perde o seu trabalho. No nível local, as famílias têm ajuda para que as crianças possam sair de férias. Em Saint-Denis, por exemplo, há bolsas para estudantes que fazem uma atividade associativa chamada engagement citoyen. Há as ludotecas e as brinquedotecas para as crianças, totalmente gratuitas.

A questão dos coletes amarelos é também de custo de vida. Por isso, estudamos programas para diminuir o custo para deslocamentos para o trabalho, a mobilidade urbana, etc.

Na França, a democracia é muito mais irrigada: temos o município, o departamento, a região, as intercomunidades aglomeradas e, por fim, a União, l’Etat. A França é um país grande com quase 70 milhões de habitantes e sua população cresce por causa de suas políticas de incentivo à natalidade e de bem-estar social. A população deve ultrapassar a da Alemanha em breve.

Uma pessoa eleita como eu, numa escala de vereador e  deputado estadual, tem uma secretária, um pool de motoristas e uma pessoa que trabalha comigo, pois também tenho um cargo no executivo local. São cargos exercidos por pessoas eleitas.

CC: Os eleitos não têm cabides de empregos que dão lugar a uma plantação de laranjas, como no Brasil…

SC: É uma democracia muito mais próxima do cidadão. Nós, eleitos, estamos nas lutas do povo, nos encontros de cidadãos. O eleitor conhece e acompanha o trabalho do eleito. E em nível salarial temos uma compensação, pois posso continuar meu trabalho como professora universitária. O salário como eleita do departamento é duas vezes e meia um salário mínimo. A política é uma função não é uma profissão. Quando eu deixar a política vou continuar como militante na vida associativa, muito ampla aqui e subsidiada pelos poderes políticos.

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