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A preço de banana

A privatização da CeasaMinas tem o potencial de gerar prejuízo de 1 bilhão de reais aos cofres públicos

A preço de banana
A preço de banana
Obsessão. Depois de fracassar em Brasília, Mattar se infiltrou no governo de Minas. Vender a Ceasa seria prêmio de consolação? - Imagem: Verlan A. Homem/CeasaMinas e Antônio Cruz/ABR
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Criada há 50 anos, a ­CeasaMinas é responsável por distribuir e vender alimentos a 12,7 milhões de habitantes em mais de 870 cidades. Todo ano, escoam de suas unidades 2,4 milhões de toneladas. Em 2020, o entreposto movimentou 5,1 bilhões de reais. A União embolsa 25% dos dividendos. Por ser pública, a Ceasa tem peso no controle de preços dos alimentos e possibilita a milhares de famílias o acesso a comida produzida pela agricultura familiar a preços acessíveis e sem agrotóxicos. A central foi, no entanto, incluída na lista de privatizações do governo Bolsonaro e corre o risco de ser repassada a preço de banana, em um prejuízo aos cofres públicos estimado em mais de 1 bilhão de reais.

O lance mínimo para o leilão é de 161,6 milhões de reais pelos ativos imobiliários e 91,6 milhões em outorgas, o que totaliza 253 milhões de reais, valor sete vezes menor que o 1,5 bilhão de reais de um parecer entregue ao Ministério Público Federal e ao Tribunal de Contas da União. A diferença exorbitante entre o lance mínimo e o parecer encomendado pelos servidores da Ceasa levou o TCU a acatar duas denúncias de subprecificação feitas pelos procuradores e outra pela própria presidência do Conselho de Administração do entreposto. As denúncias foram anexadas ao processo principal que tramita sob sigilo do tribunal. “Entende-se que as supostas irregularidades constantes da documentação acostada aos autos são de elevada materialidade e relevância e que existe um risco de ocorrência de dano ao Erário, caso o preço de avaliação fixado pelo governo federal seja inferior à referência de mercado”, registra o despacho do TCU ao qual CartaCapital teve acesso com exclusividade. A representação do Ministério Público foi acatada por unanimidade pelos ministros da 1ª Câmara da Corte.

O lance mínimo é de 250 milhões de reais. Só um dos terrenos do entreposto valeria 470 milhões

A representação baseia-se em denúncia apresentada pelo deputado federal Patrus Ananias, do PT. “Sempre fui contra a privatização, mas, quando vi a diferença de valores, nos assustamos e tivemos de entrar com a representação”, afirmou o deputado, presidente da Comissão de Defesa da Soberania Nacional. Além de acatar as duas denúncias, o TCU teria determinado uma terceira perícia. Os dois processos foram apensados à ação principal de 2021, de relatoria do ministro Benjamin Zymler, que avalia a desestatização da empresa.

Não bastasse, uma das empresas contratadas pelo BNDES para atuar na precificação e modelagem da privatização da Ceasa foi a G5 Partners, alvo de investigação no Ministério Público Federal por conflito de interesses. Entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020, o banco de fomento firmou três contratos de consultoria com o consórcio do qual a G5 faz parte, no valor total de 9,7 milhões de ­­reais. Dois meses depois, um dos sócios da G5, ­Marcelo Serfaty, tornou-se presidente do Conselho de Administração do ­BNDES. Documentos que circularam na mídia apontam que “a área de integridade, controladoria e gestão de riscos do banco alertou sobre o potencial conflito de interesses e pediu que o vínculo de S­erfaty com a G5 fosse analisado pelo Comitê de Ética da instituição, o que não ocorreu”. Em nota, a G5 informou à época que “Marcelo Serfaty é sócio da G5 Gestora de Recursos Ltda. (“G5 Gestora”), que conta com investimento minoritário da G5 ­Partners em seu capital social. Serfaty não é sócio ou administrador da G5 ­Partners nem o era na data de eleição para o Conselho de Administração do BNDES”. A nota acrescenta que todos contratos foram feitos por processo licitatório. Em nota, o BNDES afirmou que BNDES foi notificado no inquérito civil do Ministério Público Federal e acompanhou o trâmite até o seu arquivamento.

Se Paulo Guedes quer vender a empresa por pouco mais de 250 milhões de reais, só um dos terrenos localizados em Contagem, com 1,1 milhão de metros quadrados, é avaliado em cerca de 470 milhões de reais. O imóvel teve sua regularização questionada por ter sido feita a toque de caixa pela antiga administração municipal, então comandada por Alex de Freitas. As áreas da Ceasa foram transformadas em bairro sem passar pela aprovação da Câmara de Vereadores. Localizado no entroncamento da BR 040, que dá acesso a Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, o terreno é objeto de desejo de grandes construtoras de Minas Gerais. O edital apresentado pelo governo Bolsonaro permite que a área tenha destinação diferente das atividades da Ceasa. Um dos interessados sonha em construir um centro comercial e hubs de logística. Em nota, a prefeitura de Contagem afirmou ser contra a privatização do entreposto. A cidade não tem, no entanto, participação direta nos debates sobre o assunto, uma vez que o entreposto é uma empresa de economia mista controlada pelos governos federal e estadual.

Abraço de afogados. Bolsonaro e Zema unidos no mesmo propósito. A privatização interessa aos grandes produtores, mas limita o espaço da agricultura familiar – Imagem: Marcos Corrêa/PR (Bolsonaro com Zema) e Edmilson Nakanawa/Prefeitura de Caruaru

A desestatização da Ceasa está prevista desde o pacote anunciado em julho de 2020 pelo então secretário nacional de Desestatização, Desinvestimento e Mercado, Salim Mattar. O empresário, fundador da Localiza, acabou por deixar o governo Bolsonaro desiludido com a dificuldade em promover um saldão das estatais. Atualmente, atua como consultor para privatizações do governador Romeu Zema. Mattar, ao lado de seu irmão e presidente do Conselho da Localiza, Eugênio Pacelli, foram os maiores financiadores do Partido Novo, legenda de Zema, em Minas Gerais. No ano passado, contribuíram com cerca de 2 milhões de reais.

Poucos meses antes do anúncio da privatização, Ivagner Ferreira Júnior assumiu a diretoria técnica operacional da Ceasa, na cota do próprio Mattar, que o havia indicado para a equipe de Zema ainda em 2018, segundo postagem de Ferreira Júnior nas redes sociais. O indicado de Mattar seria o responsável por preparar o processo de desestatização na estatal. CartaCapital entrou em contato com a Ceasa para saber qual a função do servidor no processo, além de vários outros questionamentos, mas não obteve resposta e foi orientada a “procurar o BNDES”. Em nota, o banco afirmou que “os estudos elaborados no âmbito do processo de privatização ainda encontram-se em análise pelos órgãos de controle, conforme previsto nas normas dos referidos órgãos, sendo também parte essencial do processo de estruturação da desestatização”.

O TCU determinou uma terceira perícia para estimar o valor da empresa

Por trás de toda a estratégia está o sucateamento da empresa. Segundo servidores, os salários não são reajustados desde 2016 e não há investimento em infraestrutura. “Dá para contar nos dedos quem não tem empréstimos consignados, principalmente os trabalhadores com filhos, que estão em situação pior. Vivemos com salários de seis anos atrás, mesmo depois de uma pandemia e desta inflação”, afirma Sânia Barcelos Reis, diretora do Sindicato dos Trabalhadores Ativos, Aposentados e Pensionistas no Serviço Público Federal de Minas Gerais e funcionária da CeasaMinas.

O governo federal usa o sucateamento como peça de divulgação para anunciar o processo de privatização. Um vídeo divulgado pelo Ministério da Economia, intitulado #PrivatizaJá e anexado à denúncia encaminhada ao Ministério Público mostra o vendedor Márcio Salvador, lojista há 22 anos na área da União da Ceasa, na defesa da privatização, pois o “Estado é muito lento”. Além de bolsonarista, Salvador integra a Associação Comercial da Ceasa de Minas, que defende a concessão. Ele também é próximo do ex-ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antônio, conhecido pelo escândalo das candidaturas laranja do PSL em Minas Gerais, e postulante a uma vaga no Senado nas eleições deste ano. O ex-ministro também aparece em vídeos ao lado de Bolsonaro, no quais apresenta demandas da associação comercial.

Parecer. O TCU acatou as representações do Ministério Público e solicitou uma terceira perícia nos bens do entreposto

Antônio e Salvador têm acesso direto a Bolsonaro, mas os servidores do Sindsep não conseguem sequer resposta do governo federal sobre pedidos para participar das negociações em torno do processo ou entregar reivindicações dos trabalhadores. O vídeo distribuído pelo governo federal mostra imagens dos participantes do Mercado Livre de Produtores desorganizado, com produtos estocados e sobrepostos, iluminação deficiente e outros problemas. Os chamados MLPs – principal política pública da Ceasa – contam com 4 mil produtores e agricultores familiares e estão sob gestão do governo de Minas Gerais. No processo de privatização, esses setores também serão concedidos por 25 anos à iniciativa privada.

As tarifas praticadas na Ceasa não passam de 0,6% do faturamento dos atacadistas. Para se ter uma noção, os parâmetros da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura estabelecem até 2%. De acordo com projeções, caso seja privatizada e esses setores concedidos, o porcentual da taxa na empresa pode chegar a 12% e 15%, assim como a instalação de centros comerciais privados tenderia a aumentar os preços finais dos alimentos. Apesar disso, o governo Zema vê com bons olhos a concessão. “Parte da Ceasa em que ocorre a comercialização dos produtos mineiros diretamente para os consumidores e comerciantes poderá ser objeto de concessão onerosa de uso, o que propiciará, ao longo de 25 anos, investimentos, o melhor aproveitamento do espaço”, afirmou em nota.

“Os pequenos produtores que venderiam diretamente para seus consumidores e vendedores serão prejudicados em detrimento do agronegócio. Para estes, será um ganho, terão lucros nos espaços antes ocupados pela agricultura familiar. O compromisso de Zema não é com o povo, é com um projeto de Estado mínimo, neoliberal”, acusa Ananias. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A preço de banana”

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