Política

A palavra e a ordem do #NãoVai Ter Copa

A conclamação poderia ser mais criativa, como “Vamos torcer pelo Brasil em campo e nas ruas”, ou “Copa pra quem?”. Mais flexíveis, tendem a seduzir e a sensibilizar mais gente

A frase não funcionou
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A partir de junho de 2013, uma palavra de ordem – ou hashtag, como se diz em português virtual – tomou conta do país: #NaoVaiTerCopa. Ela expressa justa indignação com gastos faraônicos e faz um chamado à rebelião.

A realização do campeonato mundial de futebol no Brasil implicou a aceitação de inúmeras imposições da Fifa, que criam estados de exceção focados, intervenções urbanas, remoções de populações pobres, gastos de necessidade e prioridade duvidosa e privatizações de bens públicos.

Mas, apesar de tudo, tem Copa.

Diante desse fato, evidencia-se um problema de comunicação por parte dos ativistas. Ou, talvez, seja algo mais profundo: um problema político, e dos sérios.

“Não vai ter Copa” é quase uma progressão lógica de “Tarifa zero”, ou “Não vai ter aumento”, frases repetidas – entre outras – a plenos pulmões nas ruas, há alguns meses.

“Não vai ter Copa” é mais que uma palavra de ordem. É uma ordem em si. Tem ares de decreto. É um apelo fechado e terminativo, sem margens para mediações ou dúvidas. Não vai ter e ponto. Não vai, porra!

Fala assim quem tem força. Não parece ser o caso.

Em outras situações da História, ativistas e militantes buscaram agregar gente e organizar movimentos com conclamações terminativas. Foi o caso dos republicanos espanhóis, durante a guerra civil (1936-39). Diante do avanço dos nacionalistas de extrema direita, liderados pelo general Francisco Franco, a esquerda alardeava bravamente “No pasarán”!

Lamentavelmente, as possibilidades republicanas estavam aquém das do fascismo, que granjeou apoio entre a Igreja Católica, o empresariado rural e urbano e as forças armadas. A Luftwaffe, a recém criada força aérea da Alemanha nazista, e tropas italianas enviadas por Benito Mussolini também deram sua mão na empreitada.

Resultado: os conservadores não apenas passaram, como dizimaram a democracia, prenderam, mataram e expulsaram do país milhares de lutadores. De quebra, impuseram uma ditadura de quatro décadas.

Da América Latina vem outro exemplo. A partir da vitória da Revolução Cubana, em 1959, a esquerda continental vislumbrou a possibilidade de realizar o assalto aos céus – expressão usada por Marx como sinônimo de tomada do poder – através da luta armada. Diante de brutais contraofensivas de direita em vários países, dirigentes de pequenos agrupamentos revolucionários buscaram infundir ânimo em seus comandados. “No retrocederemos ni un milimetro en nuestras convicciones” foi uma espécie de mantra repetido em diversas situações.

Inútil. Os ventos sopravam contra e o retrocesso foi avassalador.

Os problemas não estavam com a semântica, mas com a idéia de que a vontade, mais do que a fé, move montanhas. Ou de que uma pichação espalhada pelos muros de Paris, em maio de 1968, poderia se realizar com um passe de mágica. Era o “Sejamos realistas, peçamos o impossível”. Como locução espirituosa, tem sua graça. Como emulação política, é um desastre.

As grandes ebulições maciças da História moderna foram sintetizadas em expressões simples, concretas e abertas. Não tinham ares de ultimato, de dá ou desce.

“Liberdade, igualdade e fraternidade” era algo muito palpável na França de fins do século XVIII, quando o Estado absolutista não permitia mediações de nenhum tipo e a mobilidade social era um devaneio. “Paz, pão e terra” para uma população empobrecida e sem perspectivas da Rússia de 1917, império a queimar gentes e orçamentos inutilmente na I Guerra Mundial, funcionava como facho de esperança a guiar um futuro generoso. “Diretas já”, no Brasil castigado pela crise dos anos 1980, era o substrato de anos de insatisfação com uma ditadura decadente.

Os exemplos são inúmeros, em variados tempos e lugares. Movimentos vitoriosos, dirigidos com boa percepção do mundo ao redor, geraram conclamações quase poéticas, que eletrizaram multidões.

A publicidade captou o recado e esmera-se em produzir peças sedutoras e não impositivas, que dão ao consumidor a noção de fazer suas escolhas livremente e sem imposições entre produtos e serviços no mercado.

Em havendo Copa, a população pregará os olhos nas TVs e na internet para torcer entusiasticamente. A turma do “Não vai ter Copa” acabará por falar sozinha”.

Protestos contra o mundial não devem ser feitos, então?

Ao contrário! O descontentamento popular tem razão de ser.

A conclamação poderia ser mais criativa, como “Vamos torcer pelo Brasil em campo e nas ruas”, ou “Copa pra quem?”, expressões que se espalham pelo país. Mais flexíveis, tendem a seduzir e a sensibilizar mais gente.

Não é mesmo, porra?

 

* Artigo publicado originalmente na revista CULT 191, de junho de 2014

** Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC e pré-candidato a governador de São Paulo pelo PSOL

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