Política
A ‘ministra’ das ruas
Lula prefere manter Gleisi Hoffmann no comando do PT e na articulação das mobilizações populares pró-governo


Na manhã da segunda-feira 5, Lula recebeu um enviado de Joe Biden em um hotel de Brasília, prédio que mais tarde teve o policiamento reforçado em razão de protestos de seguidores de Jair Bolsonaro. Em duas horas de conversa com Jake Sullivan, cientista político, especialista em relações internacionais e um dos conselheiros da Casa Branca para segurança nacional, Lula comparou a sua luta e a de Biden contra a mesma extrema-direita, o trumpismo lá, o bolsonarismo cá. O brasileiro quer tratar do assunto com Biden ao visitá-lo em Washington, a convite do norte-americano, logo após a posse. Os festejos em Brasília em 1º de janeiro, segundo a futura primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, reunirão até 300 mil espectadores. Uma tentativa lulista de demonstrar força nas ruas.
A 8,5 quilômetros do hotel onde Lula se sentava com Sullivan, a sede do governo de transição era palco de uma reunião entre Gleisi Hoffmann, presidente do PT, e dirigentes de movimentos sociais. O grupo havia preparado um diagnóstico sobre a participação social na gestão Bolsonaro. Ou melhor, a respeito do que ela não foi. Com quatro meses no cargo, o capitão baixou um decreto para abolir centenas de canais que permitiam às “ruas” serem minimamente ouvidas nos gabinetes do poder. No documento, os movimentos defendem, claro, a revogação do decreto, a volta das conferências nacionais (da juventude, dos negros, das mulheres etc.) dos tempos de Lula e Dilma Rousseff, a realização de referendos e plebiscitos e o uso de ferramentas tecnológicas que facilitam consultas públicas aos cidadãos.
Em 12 anos dos governos Lula e Dilma, Gilberto Carvalho foi um dos principais elos com as “ruas” e não tem dúvida: o Brasil está bem diferente daquele de 2003. O extremismo de direita é militante e achou um líder popular, Bolsonaro. Enfrentá-los exigirá apoio das massas, do contrário, há risco de se repetirem situações dramáticas como os protestos de junho de 2013 e as manifestações pelo impeachment em 2016. Lula, sugere Carvalho, precisa conversar toda semana com o povo, para expor sua interpretação dos fatos. “Nós incluímos (nos governos petistas), e isso não foi pouco, foi muito importante, mais de 40 milhões de brasileiros na economia básica, no consumo mínimo. Mas não os incluímos na consciência cidadã. Ao contrário. Permitimos que eles tivessem acesso a um certo tipo de bem, mas com uma mentalidade que hoje se identifica com a mentalidade bolsonarista: o individualismo, a violência contra aqueles que ficaram para trás”, diz Carvalho. “O que me anima é que Lula está muito convencido disso (da necessidade de conscientização), assim como a Gleisi.”
Na reunião do dia 5, os movimentos sociais pediram a Gleisi que, no novo governo, a porta de entrada deles no poder federal seja a mesma daquela dos outros mandatos de Lula, a Secretaria-Geral da Presidência. E que o ex-metalúrgico nomeie alguém que valorize as “ruas”. Entre os cotados para a função estão o deputado Paulo Teixeira, do PT paulista, e o advogado Marco Aurélio de Carvalho. O sonho dos movimentos era, porém, outro. “Havia uma expectativa de que a Gleisi fosse a ministra”, diz Raimundo Bonfim, da Central de Movimentos Populares. Detalhe: Gleisi começou a militância política como líder estudantil nos anos 1980.
Mais que antes, o petista precisará manter uma linha direta de diálogo com o povo
Bonfim integra um Conselho de Participação Social no governo de transição. O grupo encarrega-se de desenhar um modelo da relação de Lula com os movimentos sociais. Surgiu de outra conversa das entidades com a presidente do PT, em 17 de novembro. A petista comprou a ideia. A participação social, teria comentado, será “fundamental” para o governo. O que os movimentos sociais não esperavam é que o presidente eleito tivesse outra missão para Gleisi: seguir no comando da legenda. “Eu disse para a Gleisi que ser presidente deste partido hoje é tão ou mais importante do que ser qualquer ministro”, declarou Lula no dia 2.
Aos 57 anos, Gleisi, paranaense como Janja, tem mandato na presidência do PT até novembro de 2023. Tirá-la do posto abriria uma disputa interna pelo poder justamente no primeiro ano de Lula, de dificuldades econômicas e políticas. O dito “mercado” prevê crescimento inferior a 1%, número que poderia encorpar graças à ampliação do gasto público no futuro governo e, também, à manutenção do valor de 600 reais do Bolsa Família. Em 2021, o País teve alta recorde da pobreza: 62 milhões de brasileiros, maior nível em uma década, conforme o IBGE. A preservação dos 600 reais foi aprovada pelo Senado na quarta-feira 7 e aguarda votação na Câmara.
Além das tarefas internas, Gleisi tentará manter os aliados por perto. Em 2018, a dirigente foi capaz de reaproximar o PT dos movimentos sociais, unidos em torno da candidatura de Fernando Haddad. Na eleição deste ano, montou para Lula a maior aliança de partidos progressistas da história, fruto de reuniões periódicas, em geral na sede do PSB. A aliança sobrevive? As imposições da real politik, como a decisão do PT de votar pela reeleição de Arthur Lira, do PP, na Câmara, alimentam o desejo de alas do PSOL de ficarem de fora do futuro governo. A líder da bancada psolista, Sâmia Bonfim, vocalizou a posição nos últimos dias. O presidente do partido, Juliano Medeiros, e a maior liderança da sigla, Guilherme Boulos, pensam diferente. Medeiros até conversou com Gleisi sobre o espaço que o PSOL pode vir a ocupar na equipe de Lula. A sigla definirá em 17 de dezembro a postura perante o futuro governo.
Tabuleiro. Se o STF, sob o comando de Rosa Weber, extinguir ou limitar o orçamento secreto, mais fácil será a negociação entre Lula e Arthur Lira – Imagem: Carlos Moura/STF e José Cruz/ABR
Gleisi chegou ao comando petista durante o VI Congresso Nacional do partido, em junho de 2017. Era um momento duro para Lula, por obra da Operação Lava Jato. Um mês depois, o futuro presidente seria condenado pelo então juiz Sergio Moro a nove anos de prisão, no caso do tríplex do Guarujá. Mais duas semanas, e seria convertido por Moro em réu no processo do sítio de Atibaia. A própria Gleisi era alvo da Lava Jato e ainda sofre as sequelas. Em 2018, foi absolvida no Supremo Tribunal Federal, por falta de provas, da acusação de que ela e Paulo Bernardo, seu ex-marido e ex-ministro de Lula, haviam recebido 1 milhão de reais por meio de um empresário, Ernesto Kugler Rodrigues. Ainda há dois inquéritos na Corte contra a petista, ambos nascidos da Lava Jato, o 4.130 (caso Consist), aos cuidados de Cármen Lúcia, e o 4.325 (quadrilhão do PT), com Edson Fachin.
Deltan Dallagnol, ex-chefe da força-tarefa de Curitiba, elegeu-se em outubro como o deputado mais votado do Paraná, 344 mil sufrágios. Gleisi foi a segunda (261 mil). Uma campanha que ela disputou ao mesmo tempo que chefiava o comitê eleitoral de Lula, papel no qual agradou ao presidente eleito. Talvez por nunca contrariar o futuro presidente, na visão de outro integrante do comitê. A postura combativa, guerreira, custou-lhe uma acusação por injúria, calúnia e difamação, feita no Supremo em 25 de novembro pela Polícia Federal, a pedido de Bolsonaro. O motivo? Ter associado, em um comício no Rio de Janeiro, Bolsonaro ao assassinato de Marielle Franco, em 2018, e feito o mesmo, via redes sociais, no caso da morte de um petista por um bolsonarista em Mato Grosso, em agosto passado. A acusação foi parar nas mãos de um dos dois indicados do capitão para o STF, Kassio Nunes Marques.
Neste ano, Gleisi foi condenada a indenizar o bolsonarista Luciano Hang, das lojas Havan, por ter dito que o empresário sonega impostos. Logo após a eleição, requereu investigação da Procuradoria-Geral da República contra outra bolsonarista da gema, a deputada Carla Zambelli, por ter puxado uma arma no meio da rua após uma discussão, na véspera do segundo turno de votação. Gleisi não tem medo de peitar a mídia, estilo que agrada a Lula. Em 23 de novembro, tuitou que a postura da mídia era “danosa” no debate sobre furar o teto de gastos em nome dos 600 reais de Bolsa Família: “A mão pesada da mídia nunca foi assim com os descalabros financeiros deste governo”. Idem quanto aos chefes militares, diante do golpismo de alguns fardados (“Até quando o GSI e as Forças Armadas se calarão?”). Encerrada a eleição, o “bispo Macedo” achou que devia “perdoar” Lula. “Dispensamos”, tuitou, “ele é quem precisa pedir perdão a Deus pelas mentiras que propagou, a indução de milhões de pessoas a acreditarem em barbaridades sobre Lula e sobre o PT.”
Lula é grato a Gleisi pelo bom desempenho no comando do PT durante o período mais difícil da legenda
Nos últimos dias, a petista saiu em defesa da vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, depois da sentença de seis anos por corrupção: “Vítima de perseguição e politização do Judiciário. O PT está ao seu lado, força, a verdade vencerá”. Certa vez, Gleisi ouviu que era a segunda maior liderança da esquerda na América Latina, só atrás de Lula. Consta que ficou em silêncio, meio sem jeito, diante do comentário. O mundo dá voltas. Como chefe da Casa Civil de Dilma, de 2011 a 2014, choviam críticas, inclusive de colegas de partido. Um colaborador daquele tempo diz que Gleisi era estudiosa, pontual nas reuniões, mas que adorava deixar claro que era “ministra de Estado da Casa Civil da Presidência” e acordar colegas logo cedo, até de fim de semana, para pedir coisas. Um petista experiente teoriza que a dirigente aprendeu muito ao voltar para o Senado em 2014, com dois colegas de casa daquela época, o conterrâneo Roberto Requião e o correligionário Lindbergh Farias.
Como será o seu convívio com Arthur Lira na Câmara? O bolsonarizado deputado não é confiável do ponto de vista lulista, mas tem poder, graças ao famigerado orçamento secreto, cuja validade, escopo e abrangência serão definidos pelo Supremo, em julgamento iniciado na quarta-feira 7. A decisão acontece graças à presidente do tribunal, Rosa Weber, e Lula agradece. Negociar com Lira e o orçamento secreto de pé é uma coisa. Só com Lira, outra. “O orçamento secreto é o maior escândalo de corrupção e cooptação de agentes públicos. A verba vai pro Centrão e ninguém sabe como é aplicada”, tuitou Gleisi em outubro, no meio do segundo turno.
Na visão de Bonfim, o debate sobre o orçamento secreto é um bom exemplo de como as “ruas” seriam cruciais para Lula governar. “Como fazer um contraponto? Abrindo o orçamento à participação social”, afirma. “A participação social é importante para libertar o governo da condição de refém da política institucional.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A “ministra” das ruas “
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.