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A fogueira bolsonarista

No último ano de mandato, o governo tenta criminalizar o debate de gênero e censurar menções negativas ao agronegócio nas aulas

Fraude. Garimpeiros ilegais poderão ser classificados como Povos e Comunidades Tradicionais. Onipresente, Damares Alves está na dianteira do projeto revisionista – Imagem: Jerome Delay/AFP e MMFDH
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Cotada para vice na chapa de Jair Bolsonaro, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, é a principal artífice de uma ofensiva que, no último ano do governo, tentará promover uma revisão, à moda bolsonarista, do conteúdo exposto em salas de aula sobre questões como identidade de gênero, papel do agronegócio e mineração em áreas de floresta. O objetivo da ministra é adequar o ensino nas escolas à narrativa governamental sobre temas considerados sensíveis para setores da base de apoio a Bolsonaro, como as igrejas neopentecostais e o agronegócio. Outros ministros, como Tereza Cristina, da Agricultura, e Milton Ribeiro, da Educação, estão diretamente ligados ao projeto, que poderá ainda contar com a ajuda do mais novo ministro do Supremo Tribunal Federal, o conservador André Mendonça, para decolar.

O principal alvo é um velho fetiche bolsonarista: a “ideologia de gênero”. Damares, que antes do Natal conversou sobre o tema com Ribeiro, quer implementar maior vigilância sobre o que dizem os professores a seus alunos em sala de aula. Para tanto, o governo pretende se valer do fato de a “ideologia de gênero” ter passado a fazer parte do Manual de Taxonomia da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. Ou seja, tornou-se uma “modalidade de violação” passível de ser denunciada ao Disque 100, canal que recebe denúncias de violações aos direitos humanos.

O efeito imediato da criminalização da “ideologia de gênero” é o recrudescimento da perseguição a professores, novidade trazida pelo bolsonarismo no início do mandato do ex-capitão com o movimento Escola Sem Partido, mas que havia perdido força com a pandemia e a interrupção das aulas. Um caso chamou atenção no fim de novembro em Resende, interior do Rio de Janeiro. Após uma denúncia anônima pelo Disque 100, a Polícia Civil levou o diretor do Colégio Getúlio Vargas, da rede púbica, à delegacia para explicar uma possível “situação de violência cometida contra uma criança ou adolescente” em sala de aula. A denúncia, que não citava especificamente professor algum, dizia que a escola estaria “expondo os alunos aos conceitos comunistas”, além de pregar “ideologias de gênero”.

Na guerra cultural liderada por Damares, pretende-se até tratar garimpeiros como povos originários

A acusação encaminhada pelo governo afirma ainda que “a responsabilidade de direcionar a conduta dos jovens pertence unicamente aos pais e não à escola”. Segundo o Manual de Taxonomia, “a formação moral, educacional e religiosa de crianças e adolescentes é tarefa da família” e “imiscuir-se em assuntos da órbita familiar” na escola representa “grave violação” dos direitos humanos. “Simpatizantes do governo tentam criminalizar e dar aspecto subversivo a temas curriculares que têm imensa importância para a vida das crianças e adolescentes”, lamenta o professor Marcelo Klein, que ensina História no colégio e recebeu a visita da polícia.

Coordenadora do Sindicato ­Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro, Izabel Costa conta que, como consequência da perseguição, percebe-se na rede pública um movimento de autocensura dos professores: “Hoje diversos docentes estão escolhendo com muito cuidado quais temas vão trabalhar. Nem é necessário ter, de fato, a lei da Escola Sem Partido para se afrontar a nossa liberdade de cátedra e expressão”.

Segundo a sindicalista, a autocensura existe, sobretudo, em dois casos. “Primeiro, no debate acerca da sexualidade, do feminismo e do direito das mulheres, do machismo e LGBTfobia existentes em nosso País. Muitos professores nem mesmo usam mais a palavra gênero em ­suas aulas”, diz. Ocorre ainda na questão racial: “Professores de Educação Física, Artes, História e Língua Portuguesa optam por não tratar de temas como a africanidade ou as expressões culturais e religiosas dos nossos antepassados. O mais alarmante é que essa censura silenciosa é mais difícil de combater”.

O agro é pop. A dupla quer preservar a “boa imagem“ do setor – Imagem: Luis Fortes/ME

A deputada Talíria Petrone, líder do PSOL na Câmara, enviou ao ministério de Damares um pedido oficial de informações. A parlamentar quer saber quantas denúncias com base na “ideologia de gênero” foram feitas contra escolas, professores e funcionários em todo o ­País. No Rio, a deputada estadual Mônica Francisco, do PSOL, que preside a Comissão de Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social, requereu à Secretaria de Polícia Civil informações sobre outras denúncias eventualmente encaminhadas ao Disque 100 e como foram levadas adiante. Ambas aguardam resposta.

“Em 2020, o STF invalidou várias leis que censuravam a educação em gênero. Por unanimidade, reafirmou a liberdade­ de cátedra dos profissionais da educação”, lembra Mônica. “Se professores são censurados, alunos também têm seus direitos violados, e isso não pode acontecer num Estado Democrático de Direito.”

O governo também não pretende mais tolerar menções negativas ao agronegócio em sala de aula. Em reuniões no último trimestre de 2021 e que contaram com as presenças de Cristina e Ribeiro, além da onipresente Damares, os ministros se comprometeram a “erradicar a ideologia contra o agro”. O ministro da Educação afirmou ao movimento Mães do Agro, “entidade social” ligada ao setor, que vai promover neste ano uma revisão nos livros escolares. “A partir de agora, a equipe avaliadora do MEC terá pessoas que entendem de agropecuária”, prometeu Ribeiro. Entre as “ideias nefastas ao agro” que Ribeiro e Cristina querem ver censurados estão temas como “desmatamento e impacto da agropecuária sobre o meio ambiente”, “aumento do uso de agrotóxicos” e “incidência de trabalho escravo”.

Tereza Cristina, da Agricultura, e Milton Ribeiro, da Educação, estão diretamente ligados ao projeto

A revisão já se traduziu em perseguição. Um caso emblemático aconteceu em dezembro em uma escola estadual de Bonito, joia do Pantanal ameaçada pelo agronegócio. Após ser filmada por uma aluna e denunciada pelos pais da estudante, uma professora de Geografia, cujo nome foi mantido em sigilo, foi levada pela Polícia Militar por ter “menosprezado o agronegócio em sala de aula”. A profissional pediu ajuda ao sindicato local e à Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul. Jaime Teixeira, presidente da Fetems, diz que outros dois casos semelhantes foram denunciados e atribui as ações “a um setor organizado para impor a mordaça”.

“Querem criar uma aprendizagem fake news”, diz Izabel Costa. Ela critica o uso que se faz do termo revisão: “Revisão significa revisitar determinados elementos com novos dados, a Ciência e a História são processos de revisões constantes, desde que haja metodologia e novas evidências. O que se pretende é falsear a História”. Por iniciativa do ministério de Damares, o governo empenha-se em mais uma narrativa estapafúrdia em 2022. Anunciada em dezembro, a ideia é incluir pecuaristas e garimpeiros na classificação de Povos e Comunidades Tradicionais. Na prática, a inclusão possibilitará o “reconhecimento jurídico” das atividades consideradas ilegais e a consagração “da relação cultural e de posse com o território ocupado” pelo garimpo e pelo gado.

A mudança será analisada pelo Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, criado em 2016 por ­Michel Temer e hoje vinculado à Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, subordinada à pasta de Damares. Caso a inclusão de garimpeiros e pecuaristas seja aprovada, o colegiado aumentará o seu número de cadeiras e passará a incluir entidades representativas dos dois setores. “Se isso de fato acontecer, veremos o aumento dos conflitos fundiários”, alerta o deputado Rodrigo Agostinho, do PSB, presidente da Frente Parlamentar Ambientalista.

Segundo o parlamentar, o governo e o agronegócio procuram “soluções mágicas” no licenciamento da mineração e da pecuária. “Querem reconhecer um direito que não existe. Os garimpeiros estão entrando na Amazônia neste exato momento, não existe ancestralidade alguma ali. Tampouco qualquer aspecto cultural, apenas o interesse econômico e de exploração da terra.” Ele avalia, porém, que a iniciativa dos ministros revisionistas não será exitosa: “Não será aprovado. E se for, o Judiciário vai suspender”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1192 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE JANEIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A fogueira bolsonarista”

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