Política

O que tem de verdade na “Facada no Mito”?

Uma teoria conspiratória vista por 1 milhão de brasileiros diz que Bolsonaro forjou o atentado. A trama, porém, suscita questões verdadeiras

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Sejamos francos: o que não é a nossa realidade senão uma grande trama que, tendo levado Jesus a subir em um pé de goiaba, tranquilamente poderia acolher alienígenas sem qualquer espanto? No país que combate com fervor um comunismo jamais existente e vota para livrar suas crianças da mamadeira de piroca, nada mais normal do que levar a sério uma teoria conspiratória, o momento lisérgico não nos permite mais distinguir fatos e flatos, sendo tudo possível no cabaré em chamas.

O “documentário” A Facada no Mito, em cartaz no Youtube, é a teoria conspiratória em estado da arte – a bem da verdade, a sétima arte em sua quinta categoria. Publicado de forma anônima no canal True or Not (Verdade ou Não), criado apenas para esse fim, já tem quase 1 milhão de espectadores. É uma peça de “jornalismo”, assim entre aspas, de “comédia” e, sem dúvida, de maravilhoso entretenimento. Faria ótima figura como um episódio da lamentável série em que se transformou a política brasileira desde 2013, chamada pelos gaiatos de House of Mãe Joana, perto da qual House of Cards se torna tão ingênua quanto o Programa da Xuxa.

Com sua narração feita em legendas toscas, letras brancas sobre o fundo preto, A Facada no Mito assemelha-se ao cinema mudo, embora naquele houvesse revisão de texto e, neste, impere o português mal enjambrado em que as vírgulas estão ao deus-dará e as reticências não são nada reticentes em insinuar-se aqui, ali, acolá e alhures. A crase, que não está aí para humilhar ninguém, em todo caso foi suprimida, evitando o pior. Seja como for, sua existência levanta questões pertinentes, ainda que ao custo do assassinato do cinema e da literatura.

Mais perguntas. Sem notícias das investigações e com Adélio proibido de dar entrevistas, as dúvidas se acumulam

De início, o “documentário” avisa que não fará nenhuma acusação, mas “uma interpretação de fatos reais”, algo como “um ponto de vista dos fatos que suporta uma narrativa diferente da divulgada”. O filme coloca em dúvida a investigação da Polícia Federal sobre o atentado ao então candidato Jair Bolsonaro, que “deixa de fora muitas questões”. E em seu peculiar estilo de escrita, um misto de ata de reunião de condomínio com o discurso forçosamente iletrado do texto virtual, informa tratar-se de “questões que queremos dividir com o público, para que juntos possamos exigir as devidas respostas”.

Ao fundo, uma música de terror e suspense passeia de um ouvido ao outro, naquele efeito primário do som estéreo, primeiramente apresentado às nossas orelhas pela novidade dos equipamentos “três em um” que viriam a substituir a sonoridade mono dos rádios a pilha, das velhas radiolas e gravadores de fitas k-7. Com o andar da trôpega, mas estridente carruagem, a música de terror vai se transfigurando numa espécie de trilha para Shaft, ou num Vangelis que fatalmente acabará em uma triunfal Carruagens de Fogo.

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Tudo é possível no país que vota para livrar suas crianças da mamadeira de piroca

A primeira insinuação feita pela peça audiovisual diz respeito aos atentados ocorridos durante a ditadura, “da qual o candidato é um confesso admirador”. Cita a tentativa de assassinato de Carlos Lacerda e o caso Riocentro como duas “farsas” para prejudicar a esquerda, mesmo que a história mostre o quão distinto foram os acontecimentos. Fala também no “falso sequestro de Abilio Diniz”, que de falso não teve nada, embora camiseta e material de campanha do PT tenham sido plantados na cena do crime de forma a prejudicar Lula na campanha de 1989. “Enfim, a prática de forjar atentados era usada”, conclui o texto, a considerar, pelo visto, que houve um general Sarney. Melhor teria sido recorrer à série de atentados praticados pela extrema-direita desde o fim de 1967, por décadas creditada apenas à esquerda, e que justificaria a edição do AI-5 em dezembro de 1968. Somente no ano passado a Agência Pública revelou, esta sim, a farsa.

Mistério. A camisa furada de Getúlio está no museu. E a de Bolsonaro?

À parte as considerações históricas e cinematográficas, esfaqueadas em A Facada no Mito, a piada parece deixar de ser piada já a partir do quinto minuto, quando se desenha a tese principal de seus misteriosos autores: Adélio Bispo, o esfaqueador de Bolsonaro, não teria agido sozinho, ao contrário do que conclui o inquérito da Polícia Federal. Esta é uma pulga que daí em diante estará atrás da orelha do espectador, cada vez mais a se transmutar em pulgão. Quem primeiro levanta a lebre, conforme mostra o “documentário” ao resgatar depoimento gravado à polícia, é o próprio Adélio. “Houve um ferimento…”, diz o reticente esfaqueador, “embora pretendíamos…” Pretendíamos? Nós pretendíamos? Nós, quem? Infelizmente o interrogador não se ateve à morfologia do verbo e descartou saber mais a respeito da singular colocação. E ficamos nós com o incômodo inseto a sussurrar nos ouvidos.

A esta altura, somos lembrados de que os primeiros suspeitos foram naturalmente os adversários do então candidato, a “petralhada” que Bolsonaro sugerira eliminar, mas que, rápida no gatilho, teria agido antes de seu algoz. Contudo, há dúvidas pertinentes e em profusão, capazes de sepultar tal desconfiança e lançar luzes em direção às supostas sombras do inquérito policial. Ei-las, segundo os realizadores do vídeo: “Se um ataque sem sucesso poderia resultar em uma vantagem para o candidato, por que seria feito com uma faca? Se o atacante não teria escapatória em meio à multidão, por que os mandantes arriscariam uma confissão? Por que não dar um tiro a queima roupa, já que o assassino não tinha a expectativa de escapar? (A gravação exibe imagem da notícia de que o “agressor esteve em clube de tiro que filhos de Bolsonaro frequentam”, extraída do site do Jornal Nacional.) Por que o ataque não foi com um tiro a distância, considerando a falta de segurança e os diversos edifícios em volta?”

Persistem as interrogações, legítimas até que a Justiça ofereça a explicação capaz de um ponto final. “Por que o suspeito tinha quatro celulares, um notebook e utilizava uma lan house? Quem estaria pagando anonimamente os quatro advogados particulares do agressor? Por que alguém tentou forjar um álibi para Adélio, registrando a entrada dele na Câmara dos Deputados no dia do atentado? Como um funcionário da Câmara cometeria o erro absurdo de criar um registro de entrada sem a intenção? (Esta fora a justificativa apresentada para o falso registro.) Por que um dos líderes do PSL protocolou um pedido para impedir Adélio de dar entrevistas? Não é suspeito que duas pessoas que tiveram contato com Adélio morreram poucos dias após o atentado? (As duas mortes aconteceram na pensão em Juiz de Fora onde o esfaqueador havia se hospedado.) Por que a faca não foi encontrada no momento da prisão e como não havia sangue? Por que naquele dia o candidato não usava seu habitual colete em uma situação claramente arriscada? Por que não existe imagem do ferimento, mesmo com muitas pessoas filmando o acontecimento? Por que a camiseta, com todo seu valor simbólico, sumiu e uma imagem falsa foi utilizada depois? (Nas redes, difundiu-se à exaustão uma montagem que mostrava um tecido amarelo com a mesma frase da camiseta de Bolsonaro, “Meu partido é o Brasil”, acrescido de um furo com sangue.) Enfim, muitas dúvidas…” E dá-lhe o Vangelis – na verdade, Peter Joseph, o mesmo da série Zeitgeist, a desafiar nossa vã filosofia.

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Patetas. Na edição do “documentário”, os seguranças são paspalhos que só não enxergam o agressor e seu instrumento.

A partir daí, A Facada no Mito concentra-se em destrinchar “o que mostram os vídeos…” Baseado em imagens veiculadas pelos meios de comunicação, os “documentaristas” acompanham a trajetória de Adélio durante a procissão que vai culminar com o atentado a Bolsonaro, a esta altura, segundo reza o filme, um consagrado santo do pau oco. Antes, mostra o candidato em “suspeita” visita à Santa Casa de Juiz de Fora, logo depois do desembarque na cidade, como a convencer-nos da premeditada tramoia com o hospital, que na verdade teria passado o Bozo na faca afim de extirpar um câncer – o que os médicos do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, jamais suspeitaram. Combinemos que para crer em tal argumento é preciso achar que Lee Oswald trabalhava para a CIA quando matou John Kennedy, que Donald Trump foi designado para o posto por extraterrestres, e que ao girar o disco da Xuxa em sentido contrário pode-se ouvir um pronunciamento de Satanás. Lembremos, porém, que as autoridades do Brasil atual acreditam em Globo comunista e na Ursal, de forma que está liberado a cada um acreditar no duende que bem entender.

A Facada no Mito nos convence de que o esfaqueador está cercado de comparsas que o auxiliam e protegem

Trocadas. Segundo a teoria, a faca que foi usada era, na verdade, dobrável

Pois bem, voltemos à vaca fria, que é a longa trajetória de Adélio e a multidão de bolsominions pelas avenidas de Juiz de Fora. Através de imagens um tanto toscas, A Facada no Mito nos convence da seguinte narrativa: o esfaqueador está cercado de comparsas que o auxiliam, instruem, trocam com ele pacotes suspeitos, e por fim o protegem do linchamento. Por outro lado, a equipe de segurança de Bolsonaro é formada por patetas que nada veem – ou tudo veem, menos o Adélio com uma faca de churrasco levantada para cima, como a declarar a independência no Riacho do Ipiranga. Há, segundo as imagens do filme, duas tentativas de ataque. Ao congelar a imagem da investida certeira, seus realizadores concluem que a lâmina da faca só aparece quando a mão de Adélio já está a se recolher. Ao analisar a forma como ele empunha o facão, de resto apropriado a cortar uma picanha, mas nada recomendável para as artes do assassinato, tem-se por crível que a faca utilizada naquele momento era dobrável, e só se abriu depois de consumada a fraude.

CartaCapital submeteu o vídeo ao cineasta Paulo Machline, diretor dos filmes Natimorto, Trinta e O Filho Eterno, indicado ao Oscar de 2001 com o curta-metragem Uma História de Futebol. Suas conclusões: 1. Há duas possibilidades de manipulação de imagens: aquela feita por tecnologia de ponta sobre imagens perfeitamente gravadas, e a que consiste em aproveitar-se da cena tosca para a supressão ou inclusão de elementos igualmente toscos. “Não dá para afirmar que houve, mas não dá para afirmar que não houve.” 2. Não podemos chamar o filme de “documentário”, é no máximo uma peça-denúncia. Mas existe nela uma clara “inteligência de roteiro” a nos convencer do absurdo. 3. A peça “nada prova, mas provoca”. Como toda teoria conspiratória, lança mão da “teoria possível”. 4. “Há teses completamente sem sentido, algumas até engraçadas.” 5. Mas, “como a realidade nos tem ensinado, no Brasil atual não será uma surpresa se concluirmos um dia que, de fato, foi tudo uma grande farsa”.

Na segunda-feira 21, a Justiça prorrogou por 90 dias a conclusão do inquérito que investiga quem financiou a defesa de Adélio Bispo. Dois mandados de busca e apreensão foram cumpridos em endereços do advogado Zanone Manuel de Oliveira Júnior, que já advogou para membros do PCC. Em 4 de outubro, Adélio tornou-se réu por “prática de atentado pessoal por inconformismo político”, crime previsto na Lei de Segurança Nacional. Segundo a Polícia Federal, agiu sozinho. “Ou não”, como bem diria o mano Caetano.

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