Política

A direita não precisa de impeachment

Com Eduardo Cunha e Joaquim Levy agindo como virtuais primeiros-ministros, Dilma e o PT parecem não governar mais. Por Gilberto Maringoni

Joaquim Levy e Eduardo Cunha, em encontro em 23 de fevereiro: a dupla dita as medidas do governo
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A ação da oposição brasileira em busca do impeachment embute dois significados: o golpismo e a inutilidade. O golpismo, por tentar derrubar no tapetão uma presidente eleita com 54 milhões de votos, sem que exista qualquer indício ou investigação em curso sobre sua lisura no desempenho do cargo. A inutilidade porque Dilma Rousseff e seu partido aparentam ter perdido o comando da administração em quase todas as suas esferas importantes.

Frise-se: não sofreram golpe algum. Entregaram o poder por livre e espontânea vontade.

O inferno econômico que o País enfrenta é opção feita pela mandatária já em seu primeiro mandato.

Ao tomar posse, em 2011, Dilma e o PT tiveram como meta principal derrubar o crescimento econômico. O país tivera uma elevação do PIB da ordem de 7,5% no ano anterior. Era algo excepcional, após um mergulho de 0,3% negativos em 2009. O capital financeiro e a mídia bradavam contra um hipotético descontrole inflacionário que jamais se concretizou.

Dilma – apesar de saber que o mundo atravessava a mais profunda crise econômica em 80 anos – não titubeou. Atendeu ao clamor da grande finança e iniciou uma escalada das taxas de juros. A Selic saltou de 10,75%, no início de 2011, para 12,5% em julho, aumentando a sobrevalorização cambial. Anunciou também cortes orçamentários da ordem de 55 bilhões de reais.

A tática foi um sucesso, do ponto de vista do rentismo. O PIB despencou para 2,7% no mesmo ano, 0,9% em 2012, 2,2% em 2013 e chegou a algo em torno de zero em 2014.

Em tempos de retração mundial, as medidas tiveram o condão de derrubar expectativas, investimentos e sobreapreciar o dólar, inibindo as exportações.

A indústria nacional acusa o golpe. Depois de alcançar 27,5% na composição do PIB, em 1985, o percentual veio caindo ao longo dos anos. Em 1995 era de 16%, em 2004 subiu para 19,2% e desceu para 13,3% em 2013. É indicador semelhante ao ano de 1955. (Os números são do IBGE, citados em estudo da Fiesp).

Resultado: um mandato medíocre em termos de desenvolvimento.

Ao se reeleger, em 2014, Dilma fez o que é de conhecimento geral. Nomeou um ministério conservador, deu curso a medidas contracionistas e virou as costas para sua base social.

Não se sabe o que a chefe do Executivo tinha em mente, pois ela quase não se dirige à população. Seu partido tampouco explica o sentido das escolhas.

Eleita com uma margem de 3 milhões de votos sobre Aécio Neves, a mandatária decepcionou seu eleitorado, faltou com a verdade na campanha – pesquisa Datafolha constata que 47% das pessoas percebe isso – e entregou postos chave da administração a setores que lutaram por sua derrota em outubro.

Poderia ter feito diferente? Poderia. Mas teria de contrariar interesses e fazer escolhas sobre quem deveria pagar a conta da recuperação econômica. Caminho diverso ao tentado por seu partido desde 2003.

O teólogo Leonardo Boff, que se encontrou com a presidente no palácio em 25 de novembro, afirmou ter externado suas preocupações a ela. Eis suas palavras:

“A gente tem liberdade de dizer que há reticências a certos nomes, que nos preocupam, mas por outro lado sabemos que ela tem uma mão firme, não se deixa conduzir, ela conduz. Isso nos dá certa tranqüilidade”. 

Tal expectativa não se materializou. Joaquim Levy foi indicado por Dilma para atender ao mundo financeiro, a quem ela decidiu – aqui sim – tranquilizar.

A direita de sua base aliada, vendo a opção presidencial por fazer pouco caso de seu eleitorado tradicional, nas primeiras medidas após a posse, percebeu a queima de capital político no ar. Viu ali a chance de empalmar o segundo poder da República e completar um cerco nada difícil de se realizar. Assim, Eduardo Cunha partiu confiante para a disputa da Câmara, com o aval do vice-presidente Michel Temer.

Vitorioso, fez o que nem Lula e nem Dilma ousaram no início de suas gestões: Cunha colocou sua pauta de forma dura e clara no centro da mesa. As medidas são conhecidas: reforma política conservadora, CPI da Petrobras, audiência com cada um dos 39 ministros, fim a qualquer avanço nos terrenos dos costumes e bloqueio de medidas de democratização da mídia.

A tática de se começar uma gestão mostrando a que se vem não é nova. Foi popularizada por Franklin Roosevelt, que criou a métrica de definir a ação de um governo em seus primeiros cem dias. Nos primeiros cem dias de seus mandatos, Lula e Dilma colocaram no tabuleiro a pauta dos adversários, “para acalmar os mercados”. O resultado está aí.

Uma presidente fraca não consegue mais conter o ímpeto recessionista de seu ministro da Fazenda. Levy é um liberal previsível. Esgrime o discurso da estabilidade acima de tudo, contra diretrizes de crescimento e distribuição de renda. A mídia o elegeu, juntamente com Eduardo Cunha, um dos condestáveis do governo. Atuam como virtuais primeiros-ministros. Juntos definem por onde caminhará a administração na política e na economia.

O PMDB – base de apoio – mostrou suas patas em programa televisivo na última semana de fevereiro: o governo é uma plêiade de feudos autônomos, propriedade privada da agremiação. Cada ministro da sigla fala de seu cercadinho, com metas estanques. Não existe governo, não há coalizão, não há PT.

Aliás, há um Partido dos Trabalhadores.

Trata-se daquela agremiação que cabe a Lula enquadrar, segundo orientações de Eduardo Cunha. O presidente da Câmara ameaçou fazer corpo-mole na votação do ajuste fiscal, caso o ex-presidente não acerte as pontas de seu partido e da CUT.

Lula, aparentemente, não piscou. Tomou um voo para Brasília na última semana de fevereiro e instou seus senadores a fecharem questão em favor das medidas recessivas. O mesmo comportamento teve o presidente do PT, Rui Falcão, que comandou uma manobra na Executiva Nacional destinada a colocar seus correligionários em linha com os desígnios de Joaquim Levy.

Num quadro desses, para que impeachment? O que a direita liberal quer mais? O PT e Dilma têm se mostrado aliados vantajosos.

O pacote da Fazenda provocará desemprego, descontentamento popular, inflação e estagnação.

Não será o conservadorismo clássico – PSDB e DEM – quem arcará eleitoralmente com o ônus do prejuízo. E nem os colegas de Michel Temer e Eduardo Cunha.

A conta ficará integralmente para o PT, que verificará melhor o estrago em 2016 e em 2018.

Dilma aparenta não governar. Pouco aparece em público e parece se dedicar a tarefas miúdas da gestão, além de afazeres particulares. Avessa a articulações políticas, poderá continuar assim, enquanto sangra em público, com remota chance de retomar as rédeas da situação.

A mídia valoriza o que seriam agora dois varões de Plutarco – Levy e Cunha –, em detrimento da mandatária eleita. Estão a toda hora nas telas e páginas da imprensa, opinando, pautando e orientando os rumos do País.

Dilma e o PT chegaram a esse ponto porque abdicaram de qualquer política de confronto com interesses consolidados dos integrantes do topo da pirâmide social.

Avaliaram ser possível jogar pelo empate, sem ameaçar a meta adversária. Agora tomam gols atrás de gols, quase numa reprise de Brasil x Alemanha, na Copa.

Estão dando uma notável contribuição ao estudo da Ciência Política.

É algo semelhante ao que o filósofo esloveno Slavoj Zizek fala em seu livro Bem vindo ao deserto do real (Boitempo, 2003):

“No mercado atual, encontramos uma série ampla de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, cremes sem gordura, cerveja sem álcool (…e) sexo virtual enquanto sexo sem sexo”.

Inventaram agora o impeachment sem deposição física da presidente.

*Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC e ex-candidato ao governo de São Paulo (PSOL)

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