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A culpa é da vítima?

Há um esforço para responsabilizar o governo brasileiro pela truculência da Casa Branca

A culpa é da vítima?
A culpa é da vítima?
O vice-presidente Alckmin, escalado para chefiar as negociações, enviou todas as mensagens possíveis a Washington – Imagem: Redes Sociais/VPR
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Os Estados Unidos atropelaram a Organização Mundial do Comércio, criada para zelar por uma pauta liberal defendida pelo Ocidente, encarregada de consolidar regras mínimas de livre fluxo de mercadorias e serviços. A norma aceita pelos sócios da OMC é clara: a menos que haja acordo setorial de livre-comércio, o que um país concede ou cobra nas tarifas e direitos de entrada de mercadorias de um sócio tem de ser estendido a todos os demais associados da organização.

Donald Trump dispensou a OMC como fazia com candidatos a emprego em seu programa de auditório. O governo norte-americano não poderia aplicar unilateralmente tarifas de importação arbitrárias, como as que determinou recentemente, muito menos os 50% anunciados para o Brasil. Mas, desde 2019, o sistema de arbitragem para cumprimento de regras da OMC está paralisado, pela decisão dos EUA de não nomearem os juí­zes necessários ao seu funcionamento.

Se já falta racionalidade na política comercial de Trump, mais bizarra ainda é a sua aplicação ao Brasil, com o qual os EUA têm saldos positivos no comércio. O republicano apresentou, como justificativa, argumentos dignos da fábula do lobo e do cordeiro: se não há déficit, as tarifas são uma resposta à perseguição judicial ao aliado Jair Bolsonaro, à censura que ameaça grandes empresas de tecnologia, à intervenção do governo no mercado de pagamentos, com o Pix etc.

Diferentemente dos improvisos do lobo que despejava pretextos para justificar a caça ao cordeiro de Esopo, as questões levantadas por Trump e equipe não são aleatórias, fazem parte de uma agenda concreta.

O presidente dos EUA quer consolidar, no “quintal” latino-americano, governos como o de Javier Milei, na Argentina, dispostos a apoiar suas políticas a todo custo. Quer confrontar os esforços mundiais, inclusive no Brasil, para responsabilizar as grandes companhias por crimes cometidos em seus serviços de internet. E busca conter qualquer movimento que amplie a influência da China ou reduza o “exorbitante privilégio” do dólar e da estrutura financeira dos EUA, poder que permite a Washington causar sérios danos a quem aplica sanções econômicas.

Uma suposta negociação com o Brasil, até agora desdenhada por Trump, teria de incluir algo na direção apontada nessa lista. Esse é um ponto cínica ou ingenuamente deixado de lado por empresários, analistas e palpiteiros que afirmam ser o problema para a negociação as eventuais declarações ásperas de Luís Inácio Lula da Silva, ou a falta de “canais de negociação” com os EUA. Essa crítica tenta trazer para Lula a responsabilidade pelos danos econômicos causados pela truculência do governo norte-americano, por parte de comentaristas que reconhecem o absurdo das ações de Trump, mas, contrários ao petista, temem que a união do País contra a ação dos EUA fortaleça eleitoralmente o presidente brasileiro, enfático, desde o início, na defesa da soberania atacada por sanções injustificáveis.

O esforço para responsabilizar Lula pelo impasse claramente provocado por Trump esconde que o brasileiro foi um dos primeiros a fazer gestos amistosos para o norte-americano após a eleição, parabenizando-o como escolha democrática dos eleitores. Como resposta, Trump rebaixou a Embaixada dos EUA no Brasil, até hoje sem titular. Em maio, com o anúncio do tarifaço, o governo brasileiro enviou mensagens sugerindo negociações, que foram ignoradas.

Sentar-se com Trump? Além da pauta alheia ao comércio, um encontro pessoal entre os presidentes dificilmente deixaria de ser uma cilada. Trump não respeita nem aliados, ao usar líderes estrangeiros como “escada” para reforçar sua imagem de bully, negociador implacável e vitorioso. É patrimônio que acumula para negociações seguintes.

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, foi humilhado, aos berros, por Trump e seu vice, J.D. Vance. Em maio, o republicano fez o que a imprensa dos EUA descreveu como “emboscada” ao receber o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, e, depois de ouvir agrados do sul-africano, obrigá-lo a participar de uma humilhante sessão de vídeo, com distribuição de panfletos sobre o que a Casa Branca chamou de “genocídio branco”, uma fantasiosa perseguição a fazendeiros brancos naquele país africano. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, teve de ouvir um confuso arrazoado contra usinas eólicas ao se encontrar com Trump no término de negociações pelas quais foi duramente criticada por autoridades da própria Europa.

Ao País resta tomar medidas para conter os danos do tarifaço

Nem o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, que também cedeu a demandas desvantajosas, escapou. Ao se reunir com o norte-americano no fim de julho foi desrespeitado, obrigado a ouvir insultos como “nojento” dirigidos ao aliado prefeito de Londres. A Índia, cordial em negociações nas quais ofereceu reduções substantivas de taxações, terminou tarifada em 25%, entre outros motivos alegados, como represália por comprar petróleo da Rússia. E isso depois de reduzir a compra de combustível russo e aumentar a aquisição do exportado pelos EUA.

O descontrole imperial de Trump chegou ao máximo ao atacar o ministro do Supremo Alexandre de Moraes com um dispositivo legal capaz de torná-lo um pária no sistema financeiro internacional, criado para coibir dirigentes autoritários , papel dificilmente atribuível a um integrante do Judiciário brasileiro.

Ao anunciar a tarifa punitiva ao Brasil, Trump atendeu a lobbies internos, da aviação ao aço. Deixou na chuva setores como o de pescado, dependentes do consumidor dos EUA. Um recuo que legitima a postura de Lula. Mas arbitrário, como é a marca atual de Washington.

Resta ao governo brasileiro investir na contenção de danos, com medidas para apoiar e minimizar o impacto sobre setores afetados. A brutalidade imprevisível de Trump, trazendo um mercantilismo tardio aos EUA, tende a provocar uma resposta evidente: todos, inclusive o Brasil, planejam providências para reduzir a influência norte-americana em suas­ economias e buscar novos parceiros. A China, que anunciou apoio ao Brasil, está aí para o que der e vier, e levantam-se vozes na Europa lamentando a falta de empenho da liderança de lá para ações conjuntas com países como o Brasil.

É uma tendência de longo prazo. Mas inexorável. •


*Jornalista, especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.

Publicado na edição n° 1373 de CartaCapital, em 06 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A culpa é da vítima?’

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