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A crise também é estética

O Halloween em Brasília reuniu boiadeiros, militares de hospício e de pijama, torcedores da seleção e black blocs aposentados

A crise também é estética
A crise também é estética
Não satisfeita em apunhalar uma tela de Di Cavalcanti, a matilha bolsonarista marcou território no STF - Imagem: Redes sociais
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Dona Fátima, 67 anos, de Tubarão, Santa Catarina, foi uma das estrelas dos atos terroristas. Se não deu a própria vida para livrar o Brasil de Lula e do comunismo, a patriota entregou ao menos restos do corpo. Fez o que pôde. O vídeo de dona Fátima viralizou no Twitter e é absolutamente necessário descrevê-lo nos pormenores, o que me leva a pedir desculpas antecipadas aos leitores mais sensíveis. Alguém filma a cena e pergunta à invasora: “Dona Fátima, quebrando tudo?” “Quebrando tudo”, responde ela. “E cagando nessa bosta aqui.” “Cagou lá no banheiro, fez uma sujeira lá? É isso, dona Fátima, Deus abençoe a senhora”, agradece o cúmplice. “É guerra, vamos pra guerra”, retruca a heroína do vaso sanitário. A catarinense até foi pudica, preferiu lançar os petardos golpistas no lugar apropriado.

Outros vândalos não se fizeram de rogados, preferiram radicalizar e transformaram os corredores do Supremo Tribunal Federal em banheiro unissex, como uma matilha que demarca o território. Os invasores produziram tantas provas contra si mesmos, em todos os ângulos e sentidos, que o único trabalho dos investigadores vai ser separar os rostos das nádegas. Os legistas do CSI e os laboratórios de análises clínicas estariam exultantes. Há DNA por todos os cantos.

No Senado, idosos em regressão brincavam de escorregador no tablado da mesa diretora. No STF, cristãos arrancaram a imagem de Cristo do crucifixo sobre o plenário. A porta do gabinete do ministro Alexandre de Moraes, inimigo número 1, virou peça de recordação (haja fetiche), a exemplo do brasão da República. Do lado de fora, o Halloween tomava conta da Praça dos Três Poderes: boiadeiros, militares de hospício e de pijama, torcedores da Seleção, black blocs aposentados, figurantes de filmes de zumbis e aquele tio inconveniente dos almoços de domingo filmavam e fotografavam a excursão. Ambulantes garantiram, na porta dos edifícios depredados, a oferta de pipoca – para salvar o País ao estilo da dona Fátima é preciso ter o estômago forrado. Quem manteve certa distância dos acontecimentos, a começar pelos policiais do Distrito Federal e da Guarda Nacional (ou seriam seguranças privados da festa?), tinha, além da visão privilegiada, outras opções de quitutes: caldo de cana e churrasquinho.

No fim, a intentona dos brasileiros “de bem” se resumiu a um bárbaro butim

Na invasão do Capitólio em Washington, cinco apoiadores de Donald Trump morreram na defesa de suas convicções. No Capitólio à brasileira, quando finalmente a tropa de choque entrou em serviço, bastaram 40 minutos de gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral para dispersar os terroristas. Cerca de 2 mil suspeitos acabaram presos em flagrante, na Esplanada dos Ministérios e no acampamento em frente ao QG do Exército. As baixas foram de outra natureza. Mutilaram um quadro de Di Cavalcanti, sequestraram uma escultura de Brecheret e desapareceram com presentes de autoridades estrangeiras e coleções de artefatos que compunham os acervos do Congresso, do Planalto e do Supremo. No fim, a intentona dos brasileiros de “bem” resumiu-se a isso, a um saque. Bandidagem é o termo correto. A crise é de inteligência, moral e social, mas também estética.

P.S.: Grupos bolsonaristas nas redes sociais chegaram a comemorar a intervenção federal decretada por Lula na segurança do DF. A leitura apressada os levou a acreditar em golpe militar. Por linhas tortas, as orações dos inconformados foram atendidas. A luta continua. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A crise também é estética”

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