Política
A corda estourou
STF abre inquérito contra Eduardo Bolsonaro, e o governo Trump retalia com medida para constranger Alexandre de Moraes


“Antes eu era chacota, hoje sou ameaça à democracia”, lamuriou-se Eduardo Bolsonaro, ao comentar a abertura de um inquérito contra ele por tentativa de coagir autoridades responsáveis pela investigação e julgamento de seu pai, Jair Bolsonaro, acusado de articular um golpe de Estado. Aparentemente, o deputado não considerou a possibilidade de ser as duas coisas ao mesmo tempo. Desde que se autoexilou nos EUA, o filho Zero Três do ex-presidente tem rendido farto material aos produtores de memes – do simpático cartão de apresentação à nova vizinhança, subscrito por The Bolsonaro’s, aos inflamados discursos contra a “ditadura brasileira”, na qual o patriarca da família desfruta de total liberdade para desfilar de jet ski pelas praias, participar de coletivas de imprensa e organizar manifestações para “denunciar” as prolongadas penas impostas aos pop corn e ice cream sinners que devastaram Brasília em 8 de janeiro de 2023. Nem por isso Dudu deixou de representar um risco à normalidade democrática.
Uma amostra dessa ameaça foi apresentada na quarta-feira 28. Dois dias após ser indiciado, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, anunciou que seu país vai restringir a concessão de vistos para “autoridades estrangeiras e pessoas cúmplices na censura de norte-americanos”. Embora não tenha citado nominalmente o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, é evidente que a medida foi feita sob medida para atingir o magistrado brasileiro, que ordenou a suspensão da plataforma X no Brasil, em agosto de 2024, após a rede de Elon Musk – chefe do Departamento de Eficiência Governamental no governo Trump – recusar-se a cumprir ordens judiciais para a remoção de contas de bolsonaristas que propagavam discursos de ódio e fake news, além de incitar um golpe de Estado.
Muito antes de pedir licença do mandato parlamentar e abdicar da presidência da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Eduardo Bolsonaro já fazia intensa campanha para que o governo dos EUA impusesse sanções a Moraes, relator dos processos relacionados à trama golpista. Em viagens pela Trumplândia, o deputado encontrou-se com líderes republicanos e marcou presença em eventos promovidos pela extrema-direita estadunidense. Em um desses convescotes, chegou a dividir o palco com o ideólogo Steve Bannon, ex-estrategista de Trump, que brindou a plateia com uma saudação nazista enquanto discursava na convenção.
Ao lado do influenciador digital Paulo Figueiredo, neto do último general-presidente da ditadura brasileira e ex-comentarista da Jovem Pan, Zero Três percorreu diversos estados norte-americanos para angariar apoio ao “No Censors on Our Shores Act” (“Lei Sem Censores Dentro de Nossas Fronteiras”), outra iniciativa claramente direcionada a Moraes. Protocolado em setembro pelos deputados republicanos Darrell Issa, da Califórnia, e María Elvira Salazar, da Flórida – dias após a suspensão do X no Brasil –, o projeto foi aprovado pelo Comitê Judiciário da Câmara de Representantes. O texto prevê a deportação e a inadmissibilidade em território norte-americano de autoridades estrangeiras que atentem contra a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, aquela que garante a liberdade de expressão – inclusive para espalhar desinformação e incitar golpes em inglês claudicante.
À época, parlamentares da base de Lula – entre eles Lindbergh Farias, líder do PT na Câmara – solicitaram uma investigação contra Eduardo Bolsonaro por obstrução de Justiça e coação no curso do processo, na medida em que as ações visavam criar embaraços para a atuação de Moraes. O pedido foi rejeitado pelo próprio magistrado, que seguiu o parecer da Procuradoria-Geral da República, recomendando o arquivamento da notícia-crime. Ainda assim, o Zero Três preferiu permanecer nos EUA, por temer que, ao pisar no Brasil, seu passaporte fosse confiscado.
O Departamento de Estado dos EUA anunciou restrição de visto a autoridades estrangeiras acusadas de praticar “censura”
Se, antes, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, dizia não ver “elementos informativos mínimos” para justificar uma investigação, agora pensa diferente. Na segunda-feira 26, ele pediu ao Supremo a abertura de um inquérito contra Eduardo, apresentando evidências de que o deputado atuou para “interferir no andamento regular dos procedimentos de ordem criminal, inclusive ação penal, em curso contra o sr. Jair Bolsonaro e aliados”. Boquirroto, Zero Três costumava gabar-se publicamente das reuniões com autoridades do governo Trump, nas quais cobrava sanções contra Moraes. A retórica ganhou contornos mais concretos em 21 de maio, quando Rubio participou de uma audiência na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos EUA. Na ocasião, o deputado republicano Cory Mills perguntou se a Casa Branca pretendia sancionar o magistrado com base na Lei Magnitsky. Rubio não hesitou: “Há uma grande possibilidade de que isso aconteça”.
Sancionada por Barack Obama em 2012, a Lei Magnitsky prevê o congelamento de bens e a proibição de entrada nos EUA de acusados de corrupção ou de graves violações aos direitos humanos. Os efeitos das sanções não se limitam, porém, ao território norte-americano: o bloqueio pode atingir ativos em dólares no exterior, cartões de crédito com bandeiras dos EUA e até serviços digitais prestados por empresas de lá – como contas de e-mail, perfis em redes sociais e meios de pagamento alternativos, a exemplo do Google Pay. Uma espécie de pena de morte financeira.
“Gonet até demorou para solicitar a abertura do inquérito, talvez por querer analisar melhor a evolução dos fatos. Na prática, o deputado licenciado mudou-se para os EUA e instalou uma espécie de embaixada do ódio, para conspirar contra o seu próprio país”, avalia o advogado Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Unisinos e pós-doutor pela Universidade de Lisboa. “Há fortes indícios de que Eduardo Bolsonaro está embaraçando um julgamento em que o pai dele é réu. Ele age com uma clara motivação retaliatória contra integrantes do Supremo, da PF e da própria PGR.”
Moraes autorizou o inquérito contra o parlamentar, com uma pequena concessão ao investigado: “Em virtude de encontrar-se fora do território nacional, conforme requerido pela PGR, defiro a possibilidade de que os esclarecimentos de Eduardo Bolsonaro sejam prestados por escrito”. Paralelamente, o Itamaraty iniciou gestões junto ao governo dos EUA para evitar a imposição de sanções contra o magistrado, esclarecendo que qualquer medida retaliatória seria tratada como um “ataque à soberania brasileira”. Lula fez questão de sublinhar esse ponto nas comunicações diplomáticas, mas tem evitado comentar o assunto em público. Diante da imprevisibilidade de Trump, não convém subir o tom antes da hora. •
Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A corda estourou’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.