Política

A consciência do voto útil

Cientista política fala sobre a necessidade da esquerda se organizar coletivamente e buscar sua representação política.

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A poucos dias das eleições presidenciais no Brasil, as pesquisas de intenção de voto indicam uma curva crescente de votos em Haddad e uma subida discreta de Bolsonaro. Pelo índice de rejeição dos dois, seria razoável supor que o candidato mais apto a combater Bolsonaro seria Ciro Gomes, hoje, posicionado em terceiro lugar. Ciro parece mais maleável ao capital e não carrega o estigma construído, nos últimos anos, em torno do petismo. Se Ciro fosse para o segundo turno, conduziria as reformas mais livremente, sem grandes constrangimentos de forças sociais como CUT, CTB, MST, MTST.

Estas pressões, aos quais Haddad está submetido, são o que situa qualquer candidatura petista nos marcos da conciliação de classe. Razão pela qual o risco de um novo golpe já é vislumbrado, no caso de vitória do PT. Ciro poderia ser, portanto, o candidato ideal do capital: com perfil de centro-esquerda, mais centralizável do que um milico performático e com disposição e melhores condições para ceder, como já vem cedido, ao dizer que faria apenas uma reforma na reforma da previdência. É certo que o nome preferido do grande empresariado era Alckmin, mas o candidato do PSDB não emplacou. 

Neste mês, o Brasil testemunhou a imagem de Bolsonaro sendo esfaqueado. Imediatamente, sua saída de cena, recluso no Hospital Israelita, permitiu que sua candidatura assumisse um caráter espetacularmente especular: Bolsonaro, assim, conseguia espelhar Lula, ambos combalidos, vitimados e impedidos de circular livremente, em campanha, tendo, como porta-vozes, seus vices, figuras de perfil mais técnico e racional. Após tensões com seu vice, General Mourão, e da guinada da campanha do Ele Não, Bolsonaro teve de encarar a alta.

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A despeito de tais imprevistos, o capital, até o momento sem candidato, ficou mais à vontade para apoiar um militar que, se eleito democraticamente, poderá ser, dialeticamente, o sujeito responsável por recuperar as instituições democrático-burguesas. Afinal, ao contrário de fragilizar a democracia liberal, a eleição de um ditador pode expressar o máximo a que se pode chegar o princípio da liberdade, nos marcos burgueses, dado que, conforme seus teóricos mais radicais, o indivíduo deve ter o direito de, até mesmo, fazer mal a si, de acordo com sua vontade. Para um balneário destinado, mais do que nunca, à sua condição escoadouro de commodities, um regime mais duro para resolver a “bagunça na política e na economia” pode ser uma justificativa para firmar o Brasil como colônia, tal como uma típica ditadura paradisíaca do continente africano, destinada aos gringos. Assim como Bush no Iraque, Trump pode estar trazendo a democracia para o Brasil. São as trágicas repetições como farsa de que fala Marx.

No entanto, acertadamente, enquanto Lula tinha um simulacro sendo forjado em uma maca de hospital, Haddad o libertava, por meio de sua candidatura. Em meio a todos estes episódios, tivemos o dia da independência do Brasil. De certo modo, de lá pra cá, o Brasil parece caminhar para a divisão entre a marcha militar e o grito dos excluídos. Bolsonaro, neste sentido, tem o perfil adequado para o patamar de politização da sociedade brasileira, polarizada com base em imaginários, em idealizações. Parece que o eleitor nem mesmo distingue bem Alckmin dos outros candidatos de centro-esquerda. Algo nas pesquisas, relativo às abstenções, indica que o eleitor perdeu a capacidade de mensurar com minúcia as distinções entre as candidaturas, até mesmo pela difícil tarefa de distinguir liberais-desenvolvimentistas, PSDB, de desenvolvimentistas-liberais, como o Neo-PT, Ciro e a eco-liberal Marina.

A massa parece querer mesmo dar vazão à polarização bruta entre os “puros” e os vermelhos, pautados apenas por imaginários. Ambos, carentes de heróis, sinalizam para nós que o populismo ainda tem peso na democracia burguesa e, assim, dão asas a imaginações sobre soluções rápidas para o Brasil e sobre o seu passado: uns, acerca de uma ditadura civil-militar, que preferem chamar de revolução, e que teria acabado com a violência e com a inflação. Não faltam artigos acadêmicos e relatos históricos dedicados a provar o contrário; Outros, acerca de 13 anos de PT no governo, que teria impulsionado o país para a emancipação do povo, quando, na verdade, consistiu em mais de uma década de desmonte de carreiras públicas, privatizações veladas por meios de OSs, aumento exponencial de taxas de lucro de bancos e fortalecimento da fantasia do empreendedorismo como forma de converter trabalhadores sem emprego em empregados sem direitos.

É certo, porém, que, entre estes dois saudosismos, há que se optar pelo segundo e parece ser este o diapasão que explica a guinada de Haddad, desde o lançamento de sua candidatura, e o crescimento simultâneo do Proto-fascista Bolsonaro, após sua performance com as facas: estamos entre 1) uma ditadura – ou a forma como pode assumir um regime autoritário, em uma república tropical – e 2) o liberalismo, na política – com militantes sindicalistas e partidos socialistas sem riscos alarmantes de morte e com o mínimo de direitos políticos. Na economia, porém, através de um neo-desenvolvimentismo aberto, de concessões ao capital-imperialismo, a diferença entre Bolsonaro e Haddad é de grau e de ritmo. Em certa medida, o Brasil, nas eleições de 2018, caminha para os limites do horizonte de um capitalismo selvagem ou civilizado ou, em outras palavras, de um capitalismo de militares, que acirrará a atmosfera de guerra interna sob o qual já vive o país, ou de cidadãos, cuja igualdade é apenas formal e sustentada precariamente por meio do acesso ao consumo, à crédito. No entanto, esta diferença não é um mero detalhe para o capital, nem mesmo para um povo que acabava de sair da extrema miséria.

Um neoliberalismo mais agudo, em contraposição a um neo-desenvolvimentismo liberal, dialoga diretamente com as cobranças que fazem os EUA e demais países imperialistas, no sentido de colocar o Brasil em seu devido lugar. Entretanto, o crescimento de Haddad aumenta também as possibilidades para o capital, pois, agora, ele tem duas alternativas: 1) seguir dando mostras de que está disposto a qualquer coisa para alterar os rumos do país, tal como o fez, matando uma vereadora socialista, destituindo uma presidenta, prendendo sua maior liderança política e mantendo no poder um presidente impopular; ou 2) forçando, mais uma vez, o PT a uma inflexão. Haddad já rascunha uma nova Carta aos brasileiros, ao buscar apoio de um economista como Marcos Lisboa, elogioso das medidas de Temer. É o que explica o candidato já apontar para o empreendedorismo como meio de solução do povo para seus problemas sociais. Neste sentido, seja quem for, o nome com efetiva chance eleitoral é aquele escolhido pelo capital, mesmo que a contragosto.

Analistas têm razão, portanto, quanto à preferência de Haddad em dialogar com o empresariado e até mesmo com setores que atuaram na derrubada de Dilma, ao contrário de se recompor com a esquerda. As alianças, pelo Brasil, do PT com o DEM são demonstrações disto. Caso a disposição de Lula fosse para uma unidade efetiva com os socialistas e com aqueles que seguem com a pauta dos trabalhadores, o PT já teria feito um movimento mais consequente de autocrítica, na busca por uma nova composição da esquerda, ainda que em uma unidade pontual, em face do risco grave de eleição de um protótipo de ditador.

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De todo modo, este cenário não nos isenta de responsabilidade. E, aqui, a saída não passa pelo famigerado voto útil e, sim, pelo que chamaremos, em alusão às categorias da economia-política, de “voto em troca”. Isto porque atribuir um caráter de utilidade a uma coisa é reconhecer nela alguma propriedade capaz de suprir uma necessidade. O “voto em troca”, ao contrário, adequa-se, perfeitamente, ao mercado político. Ele é uma moeda, tal como tudo o que possui valor de troca, onde o valor de uso é apenas seu portador. E, enquanto a classe trabalhadora acreditar que sua única forma de decidir sobre os rumos de um país é pelo voto, seu voto não terá utilidade. Ele seguirá sendo um mecanismo da burguesia para filtrar a massa dos trabalhadores, que, se estivesse organizada coletivamente, teria imensa vantagem na disputa pelo poder, com candidaturas enraizadas no dia-a-dia de suas lutas, servindo como termômetros para sua capacidade de formar consciências. É por isto que o voto da esquerda, nas condições atuais, precisa assumir seus limites, suas feições de “voto em troca”: em troca do ascenso de forças retrógradas e autoritárias, no Brasil, é premente a escolha do mal menor, desde que estejamos cientes de que a alternativa que temos não corresponde ao projeto de país que desejamos. Caso contrário, em um país de autoritarismo extremo, não haverá nem mesmo o mínimo de liberdade para que retomemos as condições de militância em nosso local de moradia e de trabalho, em um contexto em que a moradia e o trabalho estão ameaçados.

Neste sentido, garantir a democracia burguesa é uma segunda chance que os partidos revolucionários podem se dar para não seguirem errando tanto. É uma segunda chance para que superemos nossa própria burocratização, que recuperemos nossa capacidade de ir às ruas, não para demonstrações efêmeras de uma pequena massa vanguardista, mas para a tarefa invisível de ir, de porta em porta, convocar a classe trabalhadora a se organizar: a recuperar suas associações de moradores, a estudar a teoria revolucionária, a atuar em seus sindicatos, a filiar-se no partido, na tarefa de construí-lo, e a forjar, de forma ampla e horizontal, suas próprias alternativas até o momento em que o instituto da representação se esgote.

Sem dúvida, o recuo da classe trabalhadora na defesa dos filtros da democracia burguesa implica em darmos dois passos atrás na direção da conservação do direito a ser explorado e do direito a ter que lutar. Sabemos disto. E o mal-estar diante disto é tamanho. A escolha que nos resta nos torna, curiosamente, conservadores, dado que nossa capacidade de escolha se traduz, hoje, em um voto consciente de que estaríamos caminhando para uma repetição do mesmo, buscando manter o que, no fundo, nunca tivemos, mas que, ao menos, existia como promessa, como princípio, como valor constitutivo: direitos sociais e econômicos, previstos na constituição de 88. É com este espírito que muitos de nós sentimos que preservar o mesmo que estava aí é o melhor dos mundos. Razão pela qual as eleições de 2018 assumem esta feição de plebiscito de dois turnos ou, até mesmo, de referendo, em que dizemos apenas sim ou não, a ele.

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Os limites de nossa ação, mal ou bem, será a reprodução do que já se experimenta nas performances de rua da esquerda. A militância já deu mostras de que a luta concreta, na defesa de direitos, convoca a esquerda, em um espectro mais amplo, a uma unidade, mesmo que pontual. Não é sem motivo o êxito de campos políticos, recentemente constituídos, que unem, ao menos nas manifestações de visibilidade, PT, PCdoB, PSOL e PCB, a exemplo das frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular. Se pensada, porém, de forma mais estruturada e consequente, a reunificação da esquerda implicaria no enfrentamento de nossas práticas e teorias, exigindo muita humildade de nossa parte, ao admitirmos que o popular tem medo, e que, mesmo entre os mais radicais – os que estão dispostos a ir na raiz do problema -, o mercado político exerce sua influência. Basta observarmos a centralidade que possuem as eleições, setoriais e burguesas, em partidos importantes para a classe trabalhadora: o PCB, com um misto de esquerdismo filosófico e tradição reformista; o PSTU, um partido-sindicato de petismo recalcado; e o PSOL, forjado, às pressas, por parlamentares, atentos ao calendário eleitoral. Todos estes partidos são, sem dúvida, constituídos também por muitos companheiros aguerridos e de extrema capacidade de solidariedade e sentimento de classe. Mas é preciso um alerta para a vinculação que passa a se forjar entre dinheiro e política, através dos gabinetes e aparelhos: um dos vícios que serviram de ovo da serpente para o próprio PT.

As raízes das divisões na esquerda, portanto, não estão, propriamente, em seus métodos – muitas vezes mesquinhos, tais como denunciava Marx, acerca dos partidos de sua época -, mas, em especial, nas discrepâncias de concepções ou fantasias que diferentes setores, quadros sindicais e formuladores partidários cultivam em torno da social-democracia, do socialismo e do comunismo e que passam por diferentes compreensões do que é a emancipação dos trabalhadores. Estas distinções nos ajudam, aliás, na percepção do que são os limites intransponíveis do trabalhismo e do projeto democrático-popular- cujo espectro vai desde o PDT ao PT, incluindo o clandestino PCML – e os limites a serem superados quanto ao papel do subsolo nacional na luta internacionalista. Em nosso caso, o papel do Brasil na revolução mundial, ou a perspectiva, ainda por ser elaborada, de uma revolução brasileira. O ponto de partida seria também a recuperação de categorias esmaecidas, inclusive em organizações da extrema: exploração, expropriação. O esforço, portanto, passa por algo bem mais complicado do que um preenchimento de ficha em que se afirma ser contra o capitalismo.

Em torno do desafio de imprimirmos um salto organizativo à esquerda brasileira, o que podemos apreender é que sua caminhada não é reta e exige disposição para o impossível. O Brasil carrega em seu nome os restos de seu Museu. É brasa sobre a qual se equilibra um presente, convertido em relíquia do passado: universidade pública, ensino gratuito, SUS, funcionalismo público, direito à aposentadoria, carteira de trabalho… Se não persistirmos, os que virão não conhecerão mais estas coisas. De 2013 para 2018, é possível afirmarmos que o Brasil cultiva novos valores, em termos do que, hoje, aparece para nós como hegemônico: rejeição a partidos e à política, fetiche no empreendedorismo… Até mesmo as formas de associações mudaram e se baseiam mais em ficções. Basta vermos os grandes encontros de jovens, reunidos para disputas de games, ou as comunidades e grupos sociais, sustentados em redes virtuais.

O futuro deste país-Museu é, portanto, o que resiste nele de trabalho vivo: seus professores, pesquisadores, estudantes, garis, profissionais da saúde, da educação, da cultura, metalúrgicos, torneiros mecânicos… Este caráter vivo, da força dos que trabalham, é o que necessitamos para recuperarmos até a referência no trabalho, no interior das organizações socialistas. Uma dica para cidadãos (aqueles que apenas votam), que, outrora, foram militantes (aqueles que labutam disciplinadamente em nome de um projeto revolucionário) e que, hoje, só vão a campo como ativistas – aqueles que só marcam presença em atos. É preciso atuar menos e trabalhar mais. Enquanto não atentarmos para isto, o voto consciente de seu caráter de troca seguirá sendo o voto mais útil.

* É cientista política, da Faculdade de Ciências Sociais da UNIRIO.

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