Política

A cidade para todos

A participação popular é o único caminho para resolver os problemas urbanos, apontam especialistas

Vida real. Nas ruas das cidades, se vive, se ama, se odeia, se compra, se perde e se reencontra. No fim, é onde tudo acontece - Imagem: iStockphoto
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Resolver os problemas das cidades é, em grande medida, resolver os problemas do Brasil. Atualmente, 85% dos brasileiros vivem em áreas urbanas, o que torna essencial se debruçar sobre as demandas dos municípios, tema de mais uma edição dos ­Diálogos Capitais. Promovido por ­CartaCapital, em parceria com o coletivo ­BRCidades e a Associação Nacional de Transporte Público, o Webinar “Cidades: Onde as Políticas Acontecem” tratou justamente dos desafios dos agentes públicos diante da intensa urbanização do País. As quatro mesas de debate, retransmitidas pelo portal Terra, podem ser assistidas no canal do YouTube desta revista. O seminário foi uma preparação para a Conferência Popular pelo Direito à Cidade, que acontece em junho, em São Paulo, e deverá reunir representantes de mais de 400 entidades e coletivos populares.

Um dos debatedores, o economista Marcio Pochmann, da Unicamp, citou a transição urbana ocorrida no País a partir da década de 30 do século passado, após mais de 400 anos de hegemonia agrária. O processo, afirma, levou a um deslocamento do campo para os centros metropolitanos sem nenhum planejamento, forçando o habitante do interior a se instalar em moradias em locais próximos aos ricos, que viriam a ser seus patrões nas cidades, formando uma espécie de senzala moderna. “O Brasil foi por quatro séculos um país agrário e o trabalho era uma extensão da casa. Com a industrialização, os brasileiros vão para as cidades, mudando completamente o estilo de vida, porque há uma separação entre a produção e a reprodução do trabalho”, explica Pochmann.

Economia. Vainer, Paulani e Pochmann falaram de desenvolvimento – Imagem: Redes sociais

Professora de Arquitetura e Urbanismo da USP e integrante do BrCidades, ­Ermínia Maricato dividiu a mesa com ­Pochmann e destacou a velocidade com que a industrialização influenciou a urbanização. Para se ter uma ideia, no início do século XX, apenas 10% da população vivia na cidade. Maricato destacou o gargalo habitacional provocado por esse fenômeno e citou ao menos dois grandes programas que buscaram minimizar o problema, mas criaram outros: o BNH, fundado em 1964 e extinto em 1986, que contemplou mais de 4,3 milhões de habitantes, e o programa Minha Casa Minha Vida, nos governos do PT, com suas cerca de 5 milhões de moradias. Para além de ter atendido uma grande parcela da população que não tinha acesso à casa própria, os programas provocaram um boom imobiliário e abriram caminho para o mercado inflacionar os preços do aluguel e do metro quadrado, ampliando consideravelmente as periferias e deixando muitos sem ter onde morar. “As pessoas que vivem ilegalmente em áreas ocupadas são vítimas de uma impossibilidade de ter acesso formal à terra, e, ao mesmo tempo, viram réus nos processos de despejos”, salienta. “As cidades vivem o peso de uma herança que não superamos. A elite brasileira teve seu projeto muito bem-sucedido, que é o de não admitir o acesso formal à terra.”

Professor da UFRJ e doutor em Desenvolvimento Social, Carlos Vainer acrescentou: a cidade é um espelho da sociedade capitalista contemporânea e a brasileira representa esse projeto e ainda é responsável pela deterioração dos espaços urbanos. “A burguesia que inventou a cidade moderna produz um processo de destruição dessa mesma cidade, numa espécie de urbanicídio.”

Meio ambiente. Rodrigues, Nogueira, Nataraj e Ferreira debateram as mudanças climáticas – Imagem: Redes sociais

Na segunda mesa, dedicada às mudanças climáticas, o diretor-executivo do ­ClimaInfo, Délcio Rodrigues, criticou o fato de o Brasil ser o quinto país que mais produz gases de efeito estufa. Além da queima de combustíveis fósseis, o ­País é campeão em desmatamento. “Se as emissões de gases de efeito estufa forem mantidas, vamos ter cada vez mais eventos extremos, chuvas, secas, mudanças mínimas e máximas, calor, o que fará de algumas cidades locais inabitáveis.” É necessário, diz Rodrigues, reconstruir o que foi destruído pelo governo Bolsonaro – Ibama, ICMBio, a legislação ambiental – e criar uma política mineral.

Ermínia Maricato: “As cidades vivem o peso de uma herança que não superamos”

Fernando Rocha Nogueira, da Universidade Federal do ABC, criticou a falta de prevenção de desastres naturais. “Estamos despreparados para tratar o risco de maneira geral, porque pensamos na consequência, no desastre, só nos eventos extremos. Não pensamos na causalidade e no que temos de mexer e nos organizar para mudar. Só existe risco quando você está frágil diante de uma ameaça. Temos de mudar o foco, começar a pensar que risco é um elemento que indica fragilidades. Não é o excesso de chuvas”, detalha Nogueira.

Política. Avritzer, Pinheiro e Abers discutiram a evolução das cidades – Imagem: Redes sociais

Deputado estadual pelo Paraná e ativista ambiental, Goura Nataraj associou a reconfiguração urbana ao processo democrático e cobrou dos candidatos nas eleições de outubro uma agenda voltada para a cidade. “Os presidenciáveis devem se posicionar claramente, dizer como veem mobilidade ativa, moradia, agroecologia, se a gente quiser um futuro para as nossas cidades e não ficar repetindo lamúrias de tragédias que vão ocorrer. São teses centrais.” Outra palestrante da mesa que discutiu a questão climática foi Keila ­Ferreira, especialista em Gestão de Emergência e Desastres, que citou a falta de estrutura da defesa civil e o não apoio de órgãos públicos na prevenção de acidentes naturais nas cidades, e defendeu a presença da população nas decisões como parte do fortalecimento e engajamento social. “É fundamental a participação dos núcleos comunitários para discutir problemas locais, identificar os riscos, apontar a metodologia que deve ser construída pela própria comunidade. A vulnerabilidade social e física precisa ser identificada para se ter a percepção de risco e, a partir daí, formula-se uma metodologia. Isto é resiliência, empoderamento dessa comunidade.”

O engajamento também foi tema do último dia do Webinar, que discutiu democracia e participação social. Vainer lembrou que descentralização e democratização das cidades estiveram no debate da transição do regime militar e recordou experiências vividas no passado, com destaque para o orçamento participativo, implantado em algumas cidades entre as décadas de 1980 e 1990, mas que se consolidou em Porto Alegre, durante os governos do PT. Essa dinâmica perdeu, porém, vitalidade e hoje quase desapareceu, principalmente depois do Decreto 9759, do presidente Bolsonaro, que extinguiu toda e qualquer participação popular nas decisões.

Sociedade. A participação popular foi o tema de Brasiliense, Mascia, de Vitto e de Paula – Imagem: Redes sociais

Leonardo Avritzer, professor da UFMG, falou do auge do orçamento participativo e defendeu a retomada do engajamento social nas decisões sobre as questões urbanas. “A participação precisa voltar, mas não como era. Precisa avançar e responder melhor em uma série de questões, como, por exemplo, as redes sociais.” Um dos poucos bons exemplos do orçamento participativo ainda existente no País vem de Belém do Pará. Segundo Marilene Pinheiro, do Conselho da Cidade e do Fórum Permanente de Participação Cidadã de Belém, o projeto teve início em 2021 e leva os debates sobre as questões urbanas para os bairros, distritos e ilhas. “A gestão está dando ao povo uma oportunidade de discutir suas necessidades e prioridades para sua região. As obras vão acontecer, o povo vai ser atendido e as políticas públicas vão ser implementadas”, destacou.

A última mesa também contou com Rebeca Abers, professora da UnB, que criticou o desmantelamento da participação popular na organização dos centros urbanos. “O mundo inteiro tem projetos dessa natureza, mas, no Brasil, o orçamento participativo saiu de moda. São nas pequenas obras que o cidadão entende por que aquilo é importante, num processo de real tomada de decisão. Quando não acontece, não ganha a força democrática. Pequenas obras transformam decisões locais transparentes com potencial de desmontar estruturas clientelistas.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1206 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A cidade para todos”

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