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A chance de Sonia

Com um orçamento para chamar de seu, a ministra ganha tempo para mostrar a que veio

Totem. Velhos aliados da causa cobram mais contundência de Sonia Guajajara – Imagem: Arquivo/MPI
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Em 21 e 22 de fevereiro, o Conselho Nacional de Política Indigenista, formado por representantes do governo e da sociedade, vai reunir-se pela primeira vez em oito anos, em Brasília. Criado por Lula no primeiro mandato, em 2006, como “comissão”, ganhou o status atual, mais robusto, no fim de 2015. ­Dilma Rousseff preparava-se para a batalha do impeachment e tentava aproximar-se dos indígenas, insatisfeitos com o desapreço da petista pela causa no mandato anterior, encerrado em 2014. No embalo daquelas queixas, uma maranhense despontara em 2013 como uma das principais lideranças indígenas, ao comandar o cerco ao Palácio do Planalto com dois protestos.

Sonia Guajajara, de 49 anos, é hoje a ministra dos Povos Indígenas e ressuscitou o conselho, com aval do Palácio do Planalto. Dos 57 integrantes, 29 vêm das bases. A ministra quer ouvi-las para construir planos, iniciativas. Sua pasta nasceu em 2023 e, enfim, conseguiu um orçamento para chamar de seu. São 127 milhões de reais neste ano. A maior parte será destinada ao apoio às comunidades. No concurso que o governo realizará, em maio, para contratar 6,6 mil servidores, 30 serão para o ministério e outros 502 para a Funai, cujo quadro conta atualmente com 1,3 mil funcionários, 50% da equipe dos tempos de Dilma. Em sondagens prévias à volta do conselho, o time da ministra constatou que a defesa da demarcação de reservas é unanimidade entre os indígenas, uma população de 1,7 milhão de habitantes, segundo o último censo. O auxílio para uma vida cotidiana melhor nos territórios (saúde, educação, essas coisas) vem em seguida.

Braço direito. Eloy Terena acompanha a ministra desde os tempos da Apib – Imagem: Arquivo/MPI

Há também críticas na base. Aos 47 anos, Beto Marubo, um dos líderes do Vale do Javari, região amazônica onde ocorreu o assassinato de um servidor da Funai e de um jornalista inglês em 2022, tem sido ácido com o governo nas redes sociais. Vê demora em demarcações e desintrusões, a expulsão de invasor de uma reserva, e crê que Lula tem rifado os direitos indígenas no Congresso. Há ainda quem critique a atuação até aqui da ministra. “Muita festa, muita viagem internacional, muito discurso, muito do mesmo e nada do necessário. Uma lástima”, escreveu em 12 de janeiro no ex-Twitter o ativista e escritor paraense Daniel Munduruku, de 59 anos. É possível que uma certa rivalidade explique o comentário. Na eleição de 2022, o escritor concorreu a deputado federal por São Paulo, pelo PDT. Na prática, ­disputou votos com Sonia, que igualmente queria chegar à Câmara. Ela teve 156 mil e se elegeu pelo PSOL. Ele teve 9 mil e ficou de fora.

Antagonismos à parte, o desempenho da ministra tem de fato gerado reparos dentro e fora do governo. “Cadê aquela Sonia Guajajara combativa que cercava o Planalto? A criação do ministério foi uma conquista histórica, mas ele poderia ser mais proativo na defesa de demarcações, de desintrusões. Já ouvi de indígenas históricos e aguerridos que há ‘acomodação’ do ministério aos limites da ação governamental.” Palavras de um defensor da causa que, em 2013, estava no Planalto sitiado por indígenas e que hoje trabalha no setor privado. “Qualquer cargo de gestão pública é suscetível a críticas, sugestões e elogios, como parte fundamental de um regime democrático. O ano de 2023 foi o primeiro de um ministério recém-criado”, justifica a pasta, em nota. “Reconhecemos a complexidade e os desafios inerentes à gestão pública, especialmente em questões indígenas, onde há uma carga histórica de situações não resolvidas.”

Lula está entre aqueles que esperavam mais da ministra e sua equipe. Desde o fim do ano passado, CartaCapital ouve em Brasília relatos sobre a visão do presidente. O petista prometeu na eleição criar o ministério em resposta ao retrocesso bolsonarista na área e imaginava poder colher dividendos políticos quando, e se, voltasse ao poder. O noticiário sobre assuntos indígenas não têm sido um manancial favorável. Tome-se a crise com os ianomâmis em Roraima. Um ano após o início de uma grande ação federal e de 1 bilhão de reais investido, o garimpo ilegal e as mortes continuam.

Lula esperava uma ministra mais combativa, um contraponto aos militares

Em 9 de janeiro, o presidente fez uma reunião ministerial sobre o tema e, segundo relatos obtidos pela reportagem, cobrou Sonia. Não pela crise em si, mas por aspectos específicos. Um deles: o silêncio sobre a culpa no cartório dos militares. Um ofício do Ministério dos Povos Indígenas à pasta da Defesa, de José ­Múcio, pediu para fechar o espaço aéreo entre Brasil e Venezuela na região. Os garimpeiros acampam do lado de lá da fronteira e atuam no de cá. O pedido foi ignorado. Mais: por inação fardada, encalharam cerca de 30 mil cestas básicas destinadas aos ianomâmis, quase a mesma quantidade distribuída. Uma das características do estilo Lula de governar é juntar visões diferentes e extrair o rumo. Os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e da Casa Civil, Rui Costa, divergiam sobre a meta fiscal deste ano. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, discordam quanto à política de preços dos combustíveis. Tem faltado a Sonia tensionar o governo e, publicamente, os coturnos.

Na terça-feira 23, houve uma reunião ministerial na Casa Civil da Presidência, sem Lula, sobre os ianomâmis. Definiu-se que o coordenador de desintrusão dos invasores da reserva será um servidor da Secretaria Geral da Presidência experiente em missões do gênero. Nilton ­Tubino exerceu o papel em 2012, no governo ­Dilma, em uma delicada expulsão em uma reserva xavante em Mato Grosso, a de Marãiwatsédé. De acordo com um participante da reunião na Casa Civil, Sonia teria ficado calada diante de ideias incompatíveis com a realidade indígena. Houve sugestões de distribuir BPC, benefício parecido com o Bolsa Família, e de apoio à produção agrícola. Uma comunidade que produz há séculos precisa ser ensinada a plantar? Uma comunidade isolada do “homem branco” quer e precisa de dinheiro vivo?

De setembro a dezembro do ano passado, houve a desintrusão de uma reserva no Pará, a de Apyterewa, na cidade de São Félix do Xingu. A terra havia sido demarcada em 2007, mas a existência de invasores (pecuaristas, madeireiros), apoiados por políticos locais, atrapalhou a posse plena do território pelos beneficiados. O episódio mostrou a necessidade de Sonia ser mais combativa. Há relatos de que os ministros Múcio e Flávio Dino, da Justiça, teriam sido condescendentes com os invasores. Teriam até organizado reuniões virtuais sobre o tema sem a participação da ministra.

Dino, que em breve assume uma vaga no Supremo Tribunal Federal, não foi célere no quesito “demarcações de terras”. No ano passado, o Congresso tirou de Sonia e repassou à Justiça a última palavra, antes daquela do presidente, sobre demarcações. Até hoje, há governistas no Legislativo que citam que, na antevéspera da apresentação do relatório final sobre a Medida Provisória 1154, Sonia estava fora do Brasil, no festival de cinema de Cannes. Quando sair da Justiça para o STF, Dino deixará 29 processos demarcatórios pendentes. Só em novembro montou uma equipe para cuidar do assunto. E com apenas dois integrantes: Estella Libardi de Souza, da Funai, e uma assistente. No ano passado, foram demarcadas oito reservas. Com Michel Temer e Jair Bolsonaro em seis anos, nenhuma. Em 2024, a Funai tem 745 milhões de reais de orçamento, dos quais 143 milhões reservados às demarcações. Possui 132 procedimentos iniciais para identificar e delimitar terras indígenas, os chamados RCIDs, oito abertos no ­atual governo. A presidente do órgão, Joenia Wapichana, de 50 anos, esteve na recente reunião na Casa Civil sobre ianomâmis e teria falado pouco. A relação entre ela e Sonia é descrita por testemunhas como complicada, embora nos últimos dias ambas tenham conversado sobre a participação conjunta em uma live na internet.

Obstáculos. A situação de penúria dos ianomâmis continua. E haveria um descompasso entre a ministra e Joenia Wapichana, da Funai – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR e Rovena Rosa/ABR

São histórias e perfis diferentes. A ministra construiu-se como liderança coletiva, a partir da Associação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib, uma reunião de entidades regionais. Joenia é mais técnica e acadêmica, despontou como advogada do Conselho Indígena de Roraima na defesa da reserva Raposa Serra do Sol, há quase 20 anos. Sonhava em ser a ministra. “Há uma antipatia mútua entre as equipes da Sonia e da Joenia”, afirma uma testemunha.

É uma situação com impacto na elaboração de políticas públicas. Há uma diferença profunda entre técnicos dos dois órgãos quanto ao tema da documentação social para indígenas, por exemplo, a ponto de os envolvidos, um de cada lado, não se falarem mais, apesar de serem amigos. O tema “documentação” será objeto de um seminário entre vários órgãos públicos em março. Para um servidor indigenista em Brasília, existe um problema de fundo: o ministério e ONGs como a Apib teriam uma visão mais conservacionista e focada nas demarcações, enquanto na Funai prevalece a disposição para apoiar o cotidiano e o desenvolvimento das comunidades.

A Apib não é personagem menor no enredo. Sonia foi dirigente da entidade e seu braço direito no ministério, o secretário-executivo Eloy Terena, também (chefiava o jurídico). Eloy, de 35 anos, é do povo terena, de Mato Grosso do Sul. Foi sucedido na área jurídica da Apib por um irmão de etnia, Maurício Serpa França. Uma irmã de sangue é da entidade, Val Eloy Terena, de 42 anos. Os dois principais cargos federais ligados à área indígena em Mato Grosso do Sul são ocupados por “terenas”. Elvis Cleipolidorio é chefe da Funai e Lindomar Ferreira comanda a área de saúde indígena. Ferreira e Eloy Terena fundaram, em 2015, uma ONG de defesa jurídica de indígenas, o Najup.

No governo atual, parece faltar um pouco mais de defesa vocal e política dos povos tradicionais. •

Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de e interesses.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A chance de Sonia’

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