Política
A aula de Stedile
Em sete horas de depoimento, o líder sem-terra joga a última pá de cal na defunta CPI do MST


Era para ser uma arapuca. Na terça-feira 15, o deputado e ex-ministro Ricardo Salles, relator da CPI do MST, e seus aliados estavam preparados, ou assim pensavam, para emparedar João Pedro Stedile, a mais emblemática liderança dos sem-terra. Por quase sete horas, um ascético Stedile submeteu-se a um interrogatório digno de uma comédia-pastelão.
Na verdade, quase ninguém estava interessado nas respostas. Enquanto bolsonaristas de todas as estirpes insultavam o convidado, Salles aproveitou os holofotes para dar pistas do que pretende escrever no relatório final, obra quase exclusiva de sua imaginação. O ex-ministro acusou o movimento de explorar os assentados e cometer crimes. Tentou arrancar do depoente a origem do financiamento ao grupo e fez perguntas desconexas. Uma delas? Existe na China algo parecido ao MST? Sereno e didático, Stedile respondeu: “Não, eles fizeram a reforma agrária em 1949”. Acostumado a frequentar ambientes mais hostis, o líder sem-terra não se deixou abalar. Às vezes benevolente, às vezes professoral, aproveitou a oportunidade para espalhar lições sobre conflitos agrários, concentração de terra, história e desigualdade. No fim, venceu por nocaute e despejou a última pá de cal em uma CPI que morreu por inanição e ainda não se deu conta.
Sem o apoio de Arthur Lira e sem foco, a comissão de Salles e companhia afunda
Diante das acusações de comércio ilegal de terra, Stedile colocou em dúvida o viés da comissão, criada para dar palanque ao bolsonarismo em busca de uma causa. “Temos 500 mil famílias assentadas e 60 mil acampadas. Se vocês botassem uma amostra aleatória de 1%, daria 5 mil famílias que teriam de ouvir. É evidente que esses casos que encontraram, não quero julgar se verdadeiros ou não, podem existir por conta da categoria sociológica que expliquei, o lúmpen proletariado. Mas não podemos atribuir alguns casos como se aquilo fosse geral. A natureza vai em determinado ponto dos eixos, mas isso não significa que seria maioria”, explicou, antes de sugerir à Câmara a contratação de uma universidade para fazer uma pesquisa de campo com os acampados e assentados e ter uma mostra significativa da realidade na base do MST. Salles caiu na própria armadilha depois de enumerar dados sobre o agronegócio e permitir os comentários do convidado. Mais uma aula sobre o conceito de latifúndio, agronegócio, agricultura familiar e as mazelas sociais no campo.
Entre uma resposta e outra, Stedile aproveitou para estocar o ex-ministro do Meio Ambiente, a quem acusou de desconhecer a realidade ambiental e rural do Brasil profundo. Após repetir as mesmas perguntas na tentativa de incriminar o MST e sem ter mais o que dizer, Salles quis saber o motivo de o movimento não ter realizado mais ocupações durante o governo Bolsonaro. “Primeiro, por conta da pandemia de Covid-19, não íamos estimular nenhum tipo de agrupamento. Depois, por causa do governo fascista que queria resolver tudo na violência. Ninguém é louco, sabia que corria risco de vida.” Coube aos bolsonaristas Éder Mauro (PL-PA), Evair Vieira de Melo (PP-ES), Rodolfo Nogueira (PL-RS) e Coronel Assis (União Brasil-MT) os ataques mais baixos contra o líder sem-terra, chamado de “bandido, vagabundo e delinquente”, e o MST, comparado ao “narcotráfico e quadrilha organizada”.
Resposta. Na quarta-feira 16, camponesas de todo o País participaram em Brasília da Marcha das Margaridas – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR
Em vários momentos, Salles insinuou ter provas contundentes contra integrantes do MST, parlamentares incluídos, e ameaçou enumerá-las no relatório final, que reservará um capítulo específico aos supostos autores dos crimes. “Vamos dar nomes, fatos e casos.” O teor do texto do deputado é um segredo de polichinelo: tende a criminalizar o movimento e associá-lo ao governo Lula, ao PT e ao PSOL. Ao mesmo tempo, até os tapetes verdes do Congresso sabem que a obra-prima do ex-ministro terá o destino da lata de lixo. A base governista obteve uma pequena maioria na comissão e o presidente da Casa, Arthur Lira, em vias de fechar um acordo de “governabilidade” com o Palácio do Planalto, decidiu largar os bolsonaristas à deriva. No início do mês, após articulação do líder do governo, José Guimarães (PT-CE), oito parlamentares do Centrão de oposição foram substituídos por nomes alinhados a Lira.
A manobra levou Salles a ensaiar um piti. O relator ameaçou abreviar o tempo da CPI, prevista para acabar em 14 de setembro, com possibilidade de prorrogação por 60 dias. A ideia de antecipar o relatório para a quarta-feira 16 acabou, porém, abortada. “Não faz sentido alongar uma comissão cuja maioria dos membros é governo e ligada umbilicalmente ao MST (sic). Há uma movimentação dos partidos que querem ser governo para consolidar apoio e formar bases que o Centrão sempre negociou”, reclamou. Depois de voltar atrás e manter os prazos anteriores, o deputado agendou uma nova diligência para o sábado 26, no sul da Bahia. A estratégia é associar os sem-terra baianos aos governos petistas no estado. O relator também tentou convocar o ministro da Casa Civil, Rui Costa, ex-governador baiano, mas teve os planos frustrados por Lira, que derrubou a convocação. Na manhã da quarta-feira 16, aliás, o comando da CPI reuniu-se com Lira para tentar reassumir o controle da situação. Os bolsonaristas pretendiam convencer o presidente da Câmara a desfazer as substituições de integrantes da comissão. O desfecho depende agora da disposição do Palácio do Planalto em atender às demandas do Centrão na reforma ministerial.
Mais uma tentativa de demonizar os sem-terra vai por água abaixo
Há três meses em funcionamento, a CPI realizou diligências no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, no fim de maio, e em Alagoas e Goiás, em 11 e 14 de agosto. No Pontal, por ignorância ou má-fé, visitaram dois acampamentos, o Olga Benário e Miriam Farias e a Fazenda Santa Mônica, sem ligação com o MST. A comitiva parlamentar foi acusada ainda de invadir as casas sem autorização. Em Alagoas, parlamentares estiveram no município de Atalaia e descumpriram a rota aprovada anteriormente, nos assentamentos Ouricuri I, II e III. “Eles fizeram diligência sem informar qual seria o roteiro aos demais integrantes. É abuso de poder”, dispara Sâmia Bomfim, representante do PSOL na comissão. A deputada e outras colegas têm sido alvo de misoginia, em especial por parte do Coronel Zucco, presidente da CPI.
Jornalistas foram proibidos de acompanhar a comitiva, talvez para não testemunharem a intimidação de acampados, conforme denúncias posteriores. Há outros desmandos. Em Goiás, Adriana Accorsi, do PT, integrante da comissão, foi impedida de participar de uma reunião. A comitiva foi acusada de invadir as casas do acampamento Dona Neura, na Fazenda São Lukas, na busca por “provas” contra o movimento. No mesmo dia, o Incra deu início do processo de conversão da área em assentamento. “As diligências têm uma característica muito comum, inclusive comum à própria natureza da CPI, que é ter pouco foco, muita intencionalidade em criminalizar e partir de pressupostos bastante preconceituosos em relação aos territórios e às famílias. Há um abuso de poder e um autoritarismo bastante exacerbado por parte especialmente dos que conduzem as diligências, na figura do presidente e do relator, usando em muitos momentos uma pressão moral sobre as lideranças ou mesmo sobre as famílias”, acusa Ceres Hadich, da direção nacional do MST.
Creche fechada. Lira, em negociação com o Planalto, tirou o brinquedo dos bolsonaristas – Imagem: Bruno Spada/Ag. Câmara
Segundo a militante, as diligências não são combinadas com a totalidade dos integrantes da CPI e ficam a cargo de Salles e Zucco, alinhados com grupos políticos vinculados a delegacias e governos locais, com o objetivo de perseguir ou desmoralizar o movimento. “O único objetivo é criminalizar o MST e impor limites à reforma agrária, uma política tão necessária em nosso país. Mas assim, como nas outras CPIs, vamos seguir nosso caminho, lutando pela democratização do acesso à terra. Continuaremos defendendo a democracia e combatendo todas as injustiças sociais”, destaca Ayala Ferreira, coordenadora Nacional de Direitos Humanos do MST. “Pelo histórico do relator e pela forma parcial com que conduziram esta CPI, teremos um relatório que pouco contribuirá para enfrentar os problemas reais no campo brasileiro.”
Para Sâmia Bomfim, a CPI não tem mais força e só serve para produzir material midiático e movimentar a rede bolsonarista. “A comissão perdeu completamente o sentido e consideramos esse fato uma vitória muito grande. Eles tinham a maioria, tinham a presidência, a relatoria, o tema era favorável a eles, porque partia do pressuposto de criminalizar o movimento social, e estão saindo desmoralizados, correm o risco de perder o relatório e ainda não vão conseguir emparedar o governo Lula, um dos objetivos.” Um relatório paralelo elaborado por parlamentares progressistas, diz a deputada, será apresentado como opção de voto em separado, na tentativa de substituir o parecer de Salles, caso este seja, de fato, derrotado. A CPI do ex-ministro, tudo indica, terá o mesmo destino das quatro anteriores que pretendiam demonizar os sem-terra. Vai gerar alguma espuma e nenhuma consequência.
Na quarta-feira 16, enquanto a CPI se recompunha do depoimento de Stedile do dia anterior, mais de 100 mil camponesas realizavam a 7ª Marcha das Margaridas na Esplanada dos Ministérios. As campesinas cobravam a retomada da reforma agrária e mais políticas públicas direcionadas às mulheres do campo. •
Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.
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