Política

“Não há interesse em colocar luz e transparência sobre o lobby”

A advogada Ana Frazão defende que a regulamentação do lobby é fundamental na equidade da representação de interesses e fortalecimento da democracia

É normal que particulares possam defender suas ideias e teses diante do parlamento
Apoie Siga-nos no

A confusão entre lobby e corrupção é frequente na sociedade brasileira, sobretudo diante dos graves escândalos escancarados nos últimos anos. E, embora sem regulamentação, o lobby é prática corrente nas relações entre as esferas pública e privada.

Leia mais:

Após escândalos de corrupção, regulamentação do lobby volta à pauta

“PEC do lobby pode institucionalizar distância entre Congresso e população”

Para a advogada, professora de Direito Civil e Comercial da Universidade de Brasília (UnB) e ex-conselheira do Cade, Ana Frazão, é a falta de jurisdição sobre a prática que resulta na dominação dos interesses privados sobre os públicos, comprometendo o debate democrático. Essa falta de regulamentação pesa, ainda, sobre a crescente desigualdade na representação de interesses no Congresso.

Em entrevista à CartaCapital, Frazão analisa as consequências da falta de regulamentação do lobby para a democracia do país e ressalta a necessidade de maior transparência e controle para a diminuição da desigualdade social na participação política brasileira.

CartaCapital: Por que o Brasil ainda não regulamentou o lobby?

Ana Frazão: Não é interesse de ninguém colocar luz e transparência sobre este tema. No Brasil existe uma cultura de blindagem das autoridades e dos procedimentos. Eu lembro daquela discussão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) do juiz não ter que dizer o quanto ele ganha em palestras pagas, porque é uma questão de privacidade.

Muitas vezes, tenta-se justificar falta de transparência com questões de privacidade. Acho que realmente não há nenhum interesse, nem por parte do poder econômico e nem por parte do Congresso, na regulamentação.

Se houver, a tendência é que seja uma regulamentação branda e muitas vezes até para inglês ver. É um outro risco criar uma regulamentação falha, mas com margem para um lobby autorizado e regularizado, enquanto que aquele feito “às escondidas” continua acontecendo amplamente.

CC: Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 1.202/2007, que tem como um dos pontos centrais o credenciamento dos lobistas. Existe o risco de burocratização do processo com uma regulamentação mais exigente?

AF: É preciso em primeiro lugar analisar o que é burocratizar. Por que será que um simples cadastro é uma burocracia? Sabe-se que no Brasil, pela nossa experiência, há cadastros e cadastros.

Esse tipo de registro tanto pode ser uma burocracia e de fato ser um desestímulo, como pode não ser. Pode ser um procedimento simples, hoje há recursos tecnológicos para isso.

O registro é uma forma de tornar a prática mais facilmente identificável, mas talvez não seja a única. O que me preocupa é essa atuação de bastidor, essa atuação invisível, porque ela não se torna suscetível a qualquer tipo de controle. Me parece que aí é preciso encontrar um denominador comum.

A minha grande preocupação diante desse tipo de discussão é com a necessidade de transparência, as pessoas que de fato fazem essa intermediação precisam mostrar quem são.

CC: como estabelecer limites para os interesses privados no setor público?

AF: Se a gente torna o procedimento transparente, tornamos possível essa discussão sobre limites. Enquanto esse procedimento não for transparente, essa discussão se torna capenga, pois não sabemos exatamente o que está acontecendo.

Embora esses limites sejam sempre difíceis de serem definidos de maneira apriorística, no mínimo seria importante saber quais grupos de interesse defendem que tipo de ideias.

Desta forma, torna-se possível a verificação e interferência da sociedade, além dos grupos de interesse profissionalizados. Muitas vezes, esse assunto em última análise diz respeito à comunidade como um todo e é interesse dela também acompanhar minimamente esses procedimentos e intervir quando for necessário.

CC: Os interesses privados dominaram as instituições públicas no Brasil?

AF: Hoje em dia não existe mais essa oposição tão nítida entre interesses públicos e privados. Ou seja, o interesse público não é algo transcendental, totalmente apartado dos interesses privados em jogo. O problema é quando lidamos apenas com um tipo de interesse privado, desconsiderando todos os outros interesses que podem se apresentar sobre um determinado tipo de assunto.

ana frazão.jpg Se o procedimento do lobby é transparente, fica possível discutir seus limites (Foto: Tepedino Advogados)

CC: É possível garantir a igualdade entre as instituições na representação de interesses, caso o lobby seja regulamentado?

AF: Uma coisa é certa e é até um argumento do autor Lawrence Lessing (escritor norte-americano, professor de direito em Harvard e um dos fundadores do Creative Commons): democracia pressupõe o mínimo de equidade de representação. É claro que uma igualdade absoluta pode ser um sonho, uma utopia, mas uma desigualdade manifestadamente gritante também é a antítese de uma ideia de democracia.

Como essas ideias chegam ao parlamento? Em que medida outros grupos afetados, ou os de ideias contrárias também poderão ter alguma oportunidade de participar desse debate? Essa é a grande discussão.

CC: A influência dos interesses econômicos sobre a esfera pública vêm subvertendo o sistema democrático em sua essência?

AF: Se estamos falando de democracia, é normal que os particulares representados por instituições, ou não, possam defender suas ideias e teses diante do parlamento.

Com esses casos extremamente explícitos de desigualdade representativa acontecendo, é um pouco a conclusão do Lawrence Lessing. Não há democracia, não há nem mesmo a ideia de República, o que há na verdade é a colonização do Estado e das leis por um determinado grupo.

No caso das emendas do projeto de Reforma Trabalhista, por exemplo. Foi razoável o encaminhamento de emendas diretamente de entidades patronais, sem a submissão de nenhum controle, de debate? Sem a discussão e questionamentos das entidades representativas dos empregados?

Eu parto da premissa de que a regulamentação do lobby é pelo menos uma tentativa, diante de um problema evidente que está minando a democracia.

CC: A transparência ainda é um dilema para o Brasil?

AF: O Brasil tem uma dificuldade muito grande de lidar com transparência, de entender o que é o público e separá-lo do privado. Nem sempre é fácil, por isso eu acho que a transparência e a Lei de Acesso à Informação, são sempre o melhor remédio.

As autoridades tem uma agenda pública e nela deve estar muito claro quem sugeriu determinada emenda e etc. É a forma que a gente tem de, inclusive, colocar essa discussão em debate. Senão, todo o procedimento fica encoberto, fica insuscetível a qualquer accountability, a qualquer controle. E, para todos os efeitos, há sempre aquele argumento muito usado no Brasil, “mas eu sou uma autoridade pública, eu jamais me deixaria corromper ou influenciar”.

É necessário, sobretudo, enfatizar: lobby não é corrupção. O lobby, em tese, pode até ser algo compatível com a democracia, a depender da perspectiva e da forma como ele é exercido. Mas sem requisitos mínimos de transparência e controle como é possível assegurar isso?

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo