Política
72 horas depois
O bolsonarismo é obrigado a render-se à realidade e acaba órfão


As últimas 72 horas de espera pela intervenção militar, federal ou espacial se encerraram no domingo 1°, quando Lula subiu a rampa cercado por populares, recebeu a faixa de presidente da República e discursou no parlatório do Palácio do Planalto. Alguns recalcitrantes mantiveram a esperança – a principal fake news do dia dava conta de que a posse era ilegítima, pois a verdadeira faixa continuava sob os cuidados de Jair Bolsonaro, que em breve retornará ao Brasil e assumirá o comando. A volta do Messias só convenceu poucos fanáticos e a maioria dos acampados nas portas dos quartéis decidiu, mesmo a contragosto, seguir o conselho do ex-vice-presidente Hamilton Mourão: reunir as trouxas e voltar para casa.
Bolsonaro jogara a toalha 48 horas antes. Na sexta-feira 30, o ainda presidente embarcou em um avião da Força Aérea Brasileira em direção à Flórida, onde se enfurnou na casa de um conhecido lutador de MMA. Carlos, o filho 02, o esperava. Em sua última live no YouTube, na quinta-feira 29, o capitão consolou os apoiadores e profetizou: “O mundo não acaba em 1° de janeiro”. O planeta talvez não, mas e o universo paralelo do bolsonarismo? A foto do gabinete onde Bolsonaro despachava no terceiro andar do Planalto parcialmente desmontado, estampada em diversos jornais e pelas redes sociais, resumiu o abandono de Brasília após a derrota no fim de outubro. Ante o silêncio do mandatário, o País viveu uma inesperada sensação de normalidade nos dois meses que separaram o resultado das eleições e a posse de Lula. Talvez tenha sido o melhor período dos últimos quatro anos.
A vida também não anda fácil para ex-integrantes do governo, ávidos por boquinhas nos estados governados por bolsonaristas. Poucos conseguiram garantir um emprego pelos próximos tempos. Em São Paulo, Tarcísio de Freitas, do Republicanos, ex-ministro da Infraestrutura e empossado governador, trouxe apenas um colega da esfera federal para a equipe. Wagner Rosário troca a Controladoria-Geral da União por um posto semelhante em âmbito estadual. No Distrito Federal, comandado pelo reeleito Ibaneis Rocha, Anderson Torres, ex-titular da Justiça, reassume o cargo de secretário de Segurança Pública.
No Rio de Janeiro, Cláudio Castro, eleito no primeiro turno com apoio de Bolsonaro, não empregou ninguém do Planalto Central. Castro, aliás, antecipou o horário de sua posse no Palácio Guanabara para assistir o presidente Lula subir a rampa em Brasília. Os ministros militares da reserva – Paulo Sérgio Nogueira, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno – voltam a vestir seus pijamas. Sete servidores públicos de carreira reassumem suas funções e cinco outros terão de cumprir quarentena de seis meses para regressar à iniciativa privada.
O fim melancólico do mandato enterra a promessa de Bolsonaro de liderar a oposição? O ex-presidente terá cacife, disposição e habilidade para influenciar as eleições municipais de 2024 e pavimentar uma nova candidatura presidencial em 2026? A base bolsonarista no Congresso se manterá fiel ou se renderá às contingências do poder? Segundo o cientista político Cláudio Couto, professor da FGV, o capitão não é propriamente um líder, mas um político que em determinado momento conseguiu catalisar a extrema-direita e acabou por exercer esse papel. Pela votação obtida na disputa presidencial, afirma Couto, Bolsonaro estaria apto a ser uma referência opositora, se não tivesse demonstrado tanta fragilidade por meio do “silêncio ao fim do mandato, pelos atos e o discurso derrotista na despedida e fuga”. O cientista político vê semelhanças entre o ex-presidente e o então senador Aécio Neves. O tucano, descreve, emergiu como uma liderança forte após a derrota apertada para Dilma Rousseff, em 2014, mas jogou tudo pela janela ao apostar no discurso de ódio e rancor e ao questionar o resultado da eleição. Apesar de reeleito deputado federal por Minas Gerais no ano passado, Aécio é uma sombra do que foi no passado, um espectro a rondar os corredores do Congresso.
Bolsonaro parece ter desperdiçado a chance de liderar a oposição ao fugir para a Flórida
Quanto à base de apoio, Couto acredita que, caso a “liderança” de Bolsonaro comece a se esvair, a tendência é de dispersão. O mesmo se aplica aos governadores. “Se a bancada no Congresso não tiver capacidade de articulação com os partidos, os governadores também devem se afastar.”
Para Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e autor do livro Liderança e Poder, apesar do elevado capital político e eleitoral, o isolamento e o abandono provocaram desgastes significativos na imagem de Bolsonaro. “A viagem para os Estados Unidos foi vista por muitos como fuga. Além disso, ele não dispõe de um discurso político elaborado. É agressivo, truculento e sem conteúdo.” Nesse sentido, diz o professor, o capitão terá dificuldade para liderar a oposição. Um novo líder, acredita, tende a brotar no Congresso, uma vez que “a maior parte de seu eleitorado não é bolsonarista, mas conservadora e de direita”. Fornazieri cita o general Hamilton Mourão, senador eleito pelo Rio Grande do Sul, que tenta ao mesmo tempo se afastar do transe bolsonarista sem perder a confiança do eleitorado. Coincidência ou não, Mourão, no último pronunciamento oficial em cadeia de rádio e televisão, optou pela estratégia de dar uma no cravo e outra na ferradura: criticou o ex-chefe pela omissão e fez críticas severas a Lula. Entre os bolsonaristas mais militantes, o discurso do general, que exortou o desmonte dos acampamentos nas portas dos quartéis, foi lido como traição e rendição.
Pijama. No carteado ou à beira da piscina, Heleno poderá se expressar livremente – Imagem: Marcelo Camargo/ABR
Em relação à bancada parlamentar, será preciso, acredita Fornazieri, distinguir o bolsonarismo stricto sensu dos parlamentares que apoiaram o capitão sem rezar pela cartilha da radicalização e da estridência. “A ala radical tenderá a ocupar espaços exíguos e poderá terminar por seguir novas lideranças de direita.” Em relação aos governadores, o professor não acredita em um rompimento formal, oficial, mas no afastamento paulatino, uma vez que a maioria precisa governar de forma pragmática, a fim de manter uma relação institucional amistosa com o governo Lula. “Com o passar do tempo, os governadores devem buscar um caminho político próprio, considerando as movimentações partidárias e com os olhos voltados às eleições municipais de 2024 e, depois, às eleições gerais de 2026.”
O futuro de Bolsonaro é uma incógnita. O ex-presidente obteve mais de 58 milhões de votos. Dos 27 governadores eleitos, 13 lhe declararam apoio. Três conquistaram os maiores colégios eleitorais do País: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Além dos vínculos com Arthur Lira, presidente da Câmara e candidatíssimo à reeleição, o capitão espera emplacar um ex-ministro, Rogério Marinho, do PL do Rio Grande do Norte, no comando do Senado. Lula, por sua vez, atraiu mais partidos para a base de apoio no Congresso, mas o número ainda é insuficiente para garantir uma margem folgada que permita, ao mesmo tempo, aprovar reformas e evitar ameaças à governabilidade. Sem o foro privilegiado, Bolsonaro terá de responder por inúmeros processos em primeira instância, além das ações que continuam a tramitar no Supremo Tribunal Federal por ameaças às instituições. Na terça-feira 3, senadores da CPI da Covid prometeram enviar à Justiça a lista de crimes imputados ao ex-presidente pela má gestão da pandemia. Até então, as denúncias acumulavam poeira nas gavetas do procurador-geral da República, Augusto Aras, que, desde o domingo 1°, nada mais pode fazer por aquele que o conduziu ao cargo. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “72 horas depois”
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