Política

1ª curadora indígena do Masp pede demissão após exclusão de fotos do MST em mostra

Museu diz que obras não entraram na exposição ‘Histórias Brasileiras’ por descumprimento de prazo; Sandra Benites rebate e diz que não foi avisada sobre o calendário oficial

Sandra Benites, anunciada como a 1ª curadora indígena de um museu de arte no Brasil. Foto: Reprodução/Masp
Apoie Siga-nos no

Anunciada em dezembro de 2019 como a primeira curadora indígena de um museu de arte no Brasil, Sandra Benites pediu demissão do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o Masp, após a exclusão de seis fotografias de uma exposição a ser realizada a partir de 1º de julho.

A antropóloga enviou ao Masp, nesta terça-feira 17, uma carta com o pedido de demissão. Na mostra Histórias Brasileiras, ela assinaria pela primeira vez um projeto após quase três anos como curadora adjunta.

As fotografias excluídas faziam parte de um dos oito núcleos da exposição, que levava o nome de Retomadas.

As imagens retratavam pessoas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, sob a autoria dos fotógrafos André Vilaron, Edgar Kanayko e Sônia Fardin.

O Masp diz que Benites e a curadora adjunta, Clarissa Diniz, haviam solicitado a inclusão das obras fora do prazo, mas elas dizem que não foram comunicadas sobre os limites do calendário.

Ouvida por CartaCapital, Benites não divulgou detalhes sobre o pedido de demissão, mas confirmou que o ato se deu pela exclusão das fotografias e avaliou que a sua presença na instituição serviria apenas para o uso de sua imagem.

“Eu não poderia mais estar no Masp se eu não puder contribuir da minha maneira. Sou uma mulher indígena que vem de outro processo de ocupar os espaços. Minha decisão é individual, mas o meu corpo representa o coletivo indígena, de mulheres, homens e vários outros que são excluídos dessa sociedade branca”, declarou Benites, que é natural da Terra Indígena Porto Lindo, no município de Japorã (MS). “A imagem de ocupar um lugar, na verdade, precisa de mudanças.”

Uma das fotos excluídas mostra uma imagem do 5º Congresso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em Brasília, no ano de 2007. Foto: João Zinclar

Curadoras confrontam alegações do Masp

A exposição Histórias Brasileiras ficará no Masp entre os dias 1º de julho e 30 de outubro deste ano, como uma celebração ao bicentenário da independência do Brasil. A mostra segue uma série iniciada em 2016 e tem o objetivo de oferecer “narrativas visuais, mais inclusivas, diversas e plurais, sobre a história do Brasil”.

As curadoras do núcleo Retomadas haviam reunido documentos fotográficos sobre a luta pela reforma agrária e pela demarcação dos territórios indígenas.

Porém, em 3 de maio, comunicaram aos integrantes do projeto que elas mesmas haviam decidido cancelar o espaço. Alegaram que o Masp não havia concordado com a integral inclusão do material por conta de um suposto descumprimento do prazo, e que elas não estavam dispostas a aceitar que a exposição excluísse parte das obras.

Procurada por CartaCapital em 11 de maio e nesta terça 17, a assessoria do Masp enviou, em cada ocasião, notas semelhantes sobre o caso. Uma delas consta no site do Museu e já foi rebatida pelas curadoras, mas a instituição disse que não pretende divulgar novos posicionamentos (veja as notas na íntegra ao fim da matéria).

Foto de André Vilaron, outra que estaria presente na mostra.

Em nota oficial, o Masp admitiu que recusou a inclusão das fotos, mas negou que a decisão esteja relacionada ao conteúdo das obras, “tampouco representa qualquer censura ao MST”.

O Masp declarou que as curadoras solicitaram a inclusão das seis fotografias “muito fora dos prazos do cronograma estabelecido em contrato”. Também disse que “essas restrições são comuns no processo de produção e impediram também que outros curadores da mostra solicitassem algumas obras em seus respectivos núcleos”.

O Museu afirmou que já havia buscado flexibilizar prazos para a solicitação de empréstimo, mas argumentou que preza pela “rigidez e disciplina” com relação ao contrato.

“A produção já havia procurado flexibilizar os prazos para solicitação de empréstimo de obras – mínimo de 6 meses (para museus brasileiros) e 4 meses (para galerias, coleções particulares e artistas) – e inclusive aceitou um pedido de inclusão de cartazes e documentos do acervo do MST”, declarou.

As curadoras, no entanto, divulgaram uma nova nota em 15 de maio, em que disseram desmentir a nota do Masp.

Segundo elas, não estavam mencionados no contrato os prazos de seis e quatro meses, mas somente o prazo de seis meses de antecedência. Como a exposição tinha início previsto para 1º de julho, o prazo para o empréstimo das obras expiraria em 1º de janeiro deste ano.

Porém, elas dizem que somente na segunda metade de janeiro é que foram convidadas para ir às reuniões presenciais de apresentação e aprovação do núcleo Retomadas. Segundo elas, portanto, o próprio Masp não estava seguindo o suposto cronograma.

“Nunca havíamos recebido um e-mail ou documento com o efetivo cronograma de Histórias Brasileiras“, escreveram. “Só quando houve a recusa das 6 fotografias de André Vilaron, Edgar Kanaykõ e, em 14 de abril, soubemos que o MASP havia fixado o prazo fatal de entrega para o dia 31 de março. Jamais fomos comunicadas deste termo final quando o prazo estava em curso.”

À reportagem, Clarissa Diniz salientou que o cronograma citado pelo Masp é padrão e está no contrato de todos os curadores contratados, representando, portanto, um “modelo de cronograma idealmente aplicado a todos os projetos do Masp”. Porém, como a mostra já estava atrasada, elas vinham sendo demandadas “fora do escopo desse cronograma genérico”, e a própria produção do Masp teria dito em reunião que o cronograma estava desatualizado.

Nas redes, o MST manifestou “indignação” e declarou que a decisão do Masp “desrespeita” a história do movimento.

Foto de Edgar Kanaykõ também estaria na exposição.

Leia a nota do Masp na íntegra

O cancelamento se deu pela impossibilidade de incluir, no núcleo, 6 obras de fotógrafos ligados ao Movimento Sem Terra – MST, solicitadas pelas curadoras ao departamento de produção do museu, muito fora dos prazos do cronograma estabelecido em contrato. Essas restrições são comuns no processo de produção e impediram também que outros curadores da mostra solicitassem algumas obras em seus respectivos núcleos.

A produção já havia procurado flexibilizar os prazos para solicitação de empréstimo de obras – mínimo de 6 meses (para museus brasileiros) e 4 meses (para galerias, coleções particulares e artistas) – e inclusive aceitou um pedido de inclusão de cartazes e documentos do acervo do MST. O cronograma é muito importante para a montagem saudável e de qualidade para todas as equipes envolvidas, sobretudo em uma exposição deste porte: são mais de 300 obras, ocupando dois andares no museu, com um corpo curatorial composto por 11 integrantes, e equipe operando no limite de prazos. É imprescindível, portanto, maior rigidez e disciplina com relação a todas as instâncias, não só curatorial e de produção, mas também contratuais.

A negativa do MASP para a inclusão das 6 fotografias não está, de forma alguma, vinculada ao conteúdo das obras, tampouco representa qualquer censura ao MST – algo inadmissível em uma instituição democrática como o MASP. Vale destacar que um texto de autoria do MST foi incluído no livro Histórias Brasileiras: Antologia, que acompanha a exposição e será lançado em julho, descartando, portanto, qualquer hipótese de censura. Ainda, o núcleo “Rebeliões e revoltas”, da mesma mostra, inclui diversas imagens ligadas a manifestações e movimentos sociais.

O museu lamenta profundamente o cancelamento de “Retomadas”. A exposição Histórias Brasileiras seguirá com os outros 7 núcleos organizados pelos curadores do MASP – Adriano Pedrosa, Amanda Carneiro, André Mesquita, Fernando Oliva, Glaucea Britto, Guilherme Giufrida, Isabella Rjeille, Lilia Schwarcz e Tomás Toledo.

Foto de João Zinclair retrata a Marcha Nacional pela Reforma Agrária em 2005.

Leia a nota das curadoras que rebateu alegações do Masp

Em razão da publicação da “nota sobre a exposição histórias brasileiras”, veiculada ontem pelo MASP em seu sítio na internet com justificativas sobre o cancelamento do núcleo Retomadas, nós, curadoras do referido núcleo, vimos a público exercer nosso direito de resposta e expor circunstâncias determinantes ao cancelamento de “Retomadas”, omitidas ou distorcidas na manifestação da instituição.

SOBRE OS MARCOS INDICADOS EM CONTRATO

O Museu afirma que a exclusão de “6 obras de fotógrafos ligados ao Movimento Sem Terra – MST” ocorreu porque foram “solicitadas pelas curadoras ao departamento de produção do museu, muito fora dos prazos do cronograma estabelecido em contrato”. 

A nota afirma que os prazos, teoricamente “no mínimo de 6 meses (para museus brasileiros) e 4 meses (para galerias, coleções particulares e artistas) já teriam sido flexibilizados” e que “restrições são comuns no processo de produção e impediram também que outros curadores da mostra solicitassem algumas obras em seus respectivos núcleos.” 

O primeiro equívoco da nota envolve os marcos do calendário genérico originalmente previsto no contrato, pois não havia a mencionada distinção de 6 meses para museus e 4 para galerias, coleções particulares e artistas nacionais. O único marco estabelecido para empréstimos nacionais era de 6 meses de antecedência. 

A exposição tem “previsão de inauguração em 1 de julho de 2022”, como anuncia a nota divulgada ontem pelo MASP. Portanto, caso o MASP estivesse efetivamente praticando os marcos do contrato, o prazo teria expirado em 1º de janeiro de 2022. 

No entanto, nós fomos convidadas para ir ao MASP para reuniões presenciais de apresentação e aprovação do núcleo “Retomadas” na segunda metade de janeiro: portanto, após o fim do prazo teoricamente fatal. Na ocasião, recebemos textualmente elogios do diretor artístico da instituição.

A prova definitiva de que os marcos temporais do contrato não guardavam qualquer relação com a realidade está no prazo estabelecido para empréstimos de instituições internacionais, que deveria ocorrer em até 12 meses antes da inauguração da exposição. Como a exposição será inaugurada em 1 de julho de 2022, o prazo para a requisição destes empréstimos venceria em julho de 2021. 

Contudo, ocorre que o contrato de Clarissa Diniz, por exemplo, foi assinado apenas em agosto de 2021: após, portanto, o vencimento daquele prazo, o que revela não só a impossibilidade material de execução do cronograma, bem como demonstra como o mesmo se dissociava da realidade.

SOBRE A NÃO-COMUNICAÇÃO DO CRONOGRAMA DE “HISTÓRIAS BRASILEIRAS”

A despeito do retardamento global do projeto, até a recusa do Museu em aceitar a completa representação das retomadas que intitulam o núcleo que propusemos, nunca havíamos recebido um e-mail ou documento com o efetivo cronograma de Histórias Brasileiras.

Não fomos copiadas em e-mails para a equipe curatorial, nem convocadas para reuniões que tratassem do assunto. Como curadoras adjunta e convidada — portanto, alheias ao cotidiano do escritório do MASP —, não fomos incluídas em quaisquer comunicados desta natureza. 

Só quando houve a recusa das 6 fotografias de André Vilaron, Edgar Kanaykõ e, em 14 de abril, soubemos que o MASP havia fixado o prazo fatal de entrega para o dia 31 de março. Jamais fomos comunicadas deste termo final quando o prazo estava em curso.

Como ficamos sem um calendário para guiar nosso trabalho, passamos a atender a demandas pontuais que nos chegavam de forma intermitente por meio da assistência de pesquisa da instituição ou da direção do MASP: todas sempre cumpridas com prontidão.

Preocupadas com a inexistência de uma comunicação direta por parte da equipe de produção do Museu, solicitamos à diretoria artística uma reunião com a equipe, o que aconteceu no dia 24 de março. Nesta reunião, quando indagamos sobre qual cronograma deveria ser seguido, fomos informadas de que o calendário de produção de Histórias Brasileiras estava “desatualizado” e, por isso, não seria compartilhado conosco na reunião, mas referido “por alto”. Em função de nossa demanda, durante a reunião, a equipe de produção mencionou a lógica do cronograma, mas não nos comunicou de prazos efetivos.

Diante do exposto, solicitamos o envio, por e-mail, de um cronograma que pudesse orientar nossas ações. O cronograma nunca foi enviado e, por isso, seguimos nosso trabalho de pesquisa com o MST e seus fotógrafos, iniciado no começo de fevereiro mediante autorização e ciência do MASP. O contato com esses sujeitos/movimentos, realizado com o acompanhamento do Museu, foi iniciado, portanto, cinco meses antes da abertura prevista de Histórias Brasileiras.  

No dia 13 de abril, recebemos e-mail do interlocutor designado pela instituição para acompanhar o desenvolvimento do Retomadas, o assistente de pesquisa do Museu, informando que, a partir dali, haveria uma semana para fecharmos os pedidos relativos ao MST. 

No dia seguinte, 14 de abril — portanto, ainda no começo do prazo estipulado —, respondemos o e-mail com a indicação de todo o material que representaria as retomadas: peças físicas e digitais advindas do acervo do MST e fotografias digitais de André Vilaron, João Zinclar e Edgar Kanaykõ. O prazo estipulado e informado pela instituição foi, portanto, integralmente atendido.

Para nossa surpresa, a equipe de produção informou que o conjunto das peças não poderia ter sua solicitação de empréstimo formalizada pelo MASP porque o prazo teria expirado, embora jamais tivéssemos sido informadas a seu respeito. Não houve um e-mail, uma ligação ou uma mensagem nos informando deste suposto prazo. 

Exigir o cumprimento do cronograma seria, portanto, nos atrelar a uma obrigação impossível, pois o desconhecíamos. Por sua vez, impor a nós as consequências por este suposto descumprimento de prazo, com a restrição à exibição de materiais centrais ao desenvolvimento do Retomadas, seria sujeitar o núcleo à desconfiguração conceitual, ética e política por omissão da instituição em nos comunicar o prazo final para a conclusão da pesquisa, realizada durante meses junto ao MST e seus fotógrafos. 

A nota do MASP desconsidera estas circunstâncias e a isonomia que deveria ter sido dispensada no tratamento de todos os núcleos da mostra. Afinal, ao alegar que “outros curadores também tiveram que cancelar empréstimos por esse mesmo motivo [o descumprimento de prazos institucionais]”, o MASP pretende equiparar cancelamentos eventualmente provocados pela extrapolação do cronograma à restrição infligida ao Retomadas, fruto da abrupta recusa de material pelo vencimento de prazo que desconhecíamos ou do arrependimento da instituição em estendê-lo, após reconhecer o “equívoco” na comunicação, como explicado abaixo.

SOBRE A INTRANSIGÊNCIA INSTITUCIONAL

Diante do impedimento anunciado pelo Museu, iniciamos uma negociação com sua equipe de produção que, depois de reconhecer, que nos foi passada de “maneira equivocada uma data limite para recebimento do material do MST”, informou que seguiria somente com o empréstimo de metade do conjunto — os cartazes e outros documentos vindos do arquivo do MST —, excluindo, portanto, todas as fotografias.

Reiteradas vezes, buscamos explicar ao MASP a importância da manutenção da totalidade do conjunto. As tentativas foram em vão. O Museu se manteve irredutível e não permitiu a formalização do empréstimo das 6 fotografias, apesar de a inclusão das referidas imagens sequer envolver transporte ou seguro, pois se tratava de cópias de exibição produzidas mediante a impressão de arquivos digitais.

Defrontadas com a intransigência da instituição — que reconheceu o “equívoco” institucional, mas optou por incluir apenas os cartazes, deixando de fora as fotografias que compunham o coração do Retomadas —, nos vimos impelidas a cancelar o núcleo pela impossibilidade de ele vir a representar respeitosa e responsavelmente os processos políticos que justificam sua proposição e existência.

Somos curadoras experientes, com uma trajetória de trabalho institucional e realização de exposições de grande porte, todas devidamente acompanhadas por cronogramas e um constante diálogo com suas respectivas equipes de produção. 

É por entendermos que curadorias e instituições devem ser responsáveis, cuidadosas e comprometidas, por acreditarmos profundamente na posição política evocada pelo Retomadas e por nos identificarmos integralmente com os pressupostos éticos que o sustentam, que não podemos naturalizar o que seria a contradição de excluir, do núcleo, os sujeitos e movimentos históricos que perfazem as retomadas sob a alegação de impedimentos técnicos.

Sandra Benites e Clarissa Diniz

15 de maio de 2022

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo