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Médico e ex-jogador de futebol brasileiro

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Zagallo, capítulo III

Os desentendimentos com o treinador estão na origem do longo processo que culminou com a conquista do meu “Passe Livre”

Zagallo, capítulo III
Zagallo, capítulo III
Lendária estrela brasileira foi o primeiro a vencer a maior competição do futebol como jogador e treinador. Foto: Lucas Figueiredo/CBF
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Os campeonatos estaduais e a final da Copa São Paulo, na quinta-feira 25, marcam o início do calendário do futebol brasileiro em 2024. Por ora, há pouco a acrescentar no debate esportivo. Aproveito esta brecha para escrever o capítulo final de minha novela com Zagallo. Como relatei na coluna anterior, o então treinador do vitorioso Botafogo dos anos 1960 me escalou para ocupar a função de um falso ponta-esquerda. Não deu certo e passei por dois vexames consecutivos. O primeiro em uma partida contra o Corinthians no Maracanã. O segundo ao enfrentar o Atlético no Mineirão. Em ambos os episódios, fui sacado do time com menos de 15 minutos de bola rolando.

Ao tomarem conhecimento da minha insatisfação, dirigentes do Botafogo permitiram que eu aguardasse, no banco de reservas, a oportunidade de jogar na minha posição característica, no meio-campo. A oportunidade surgiu em uma partida contra o América do Rio, mas, espantosamente, Zagallo preferiu escalar dois volantes para suprir a ausência de Gerson. Estávamos perdendo por 2 a 0 quando, finalmente, e por pressão da torcida, pude entrar em campo. Conseguimos empatar o jogo.

Naquela conversa com os dirigentes do Botafogo também ficou acertado que, se a situação não se resolvesse, eles iriam negociar minha transferência. Havia alguns clubes interessados no meu passe. Mas, nesse meio-tempo, Gerson acabou transferido para o São Paulo e ganhei a posição. Fomos campeões e tive a felicidade de erguer, como capitão do time, a Taça Brasil de 1968, título depois reconhecido como Campeonato Brasileiro.

Na virada do ano seguinte, surgiu uma excursão para o exterior e sofri uma leve lesão na coluna lombar, depois de me abaixar em casa para pegar um objeto um pouco mais pesado. Iniciei o tratamento, participei dos treinos e viajamos para o México. Antes de partir para o Estádio Azteca, passamos no quarto do querido roupeiro Aloísio para pegar o material do jogo. Qual não foi a minha surpresa ao verificar, com grande estranheza, que recebi a camisa 14, de quem estava destinado a ocupar o banco de reservas.

De cima para baixo, criaram a norma de que somente os jogadores 100% recuperados e em plena forma física poderiam ser aproveitados. Foi apenas a primeira de uma série de medidas arbitrárias que viria na sequência. Em plena ditadura, havia militares infiltrados até nas comissões técnicas dos clubes, que passaram a exigir treinos em tempo integral e ainda extinguiram a categoria de aspirantes, que mesclava jogadores da base com veteranos. Foi a melhor escola que experimentei. Os jovens atletas preparavam-se durante anos ao lado de jogadores masters, muitos deles com carreiras exemplares e valiosas conquistas, até mesmo de títulos mundiais.

Questionei a decisão de me deixarem no banco por uma leve lesão, norma inaugurada bem na minha vez. De cabeça quente, procurei me aconselhar com alguns companheiros. Eles me deram razão, mas me aconselharam a tomar cuidado com minha reação. Como não apresentaram solução alguma, decidi não acompanhar o grupo nos vestiários.

No dia seguinte, procurei o técnico para esclarecer minhas razões e disse que ele não teria nenhum problema de disciplina comigo, seguiria o roteiro da excursão sem nenhuma contestação. Seguimos assim até a volta ao Brasil. Como castigo, fui logo “emprestado” ao Olaria, mas a punição acabou se transformando em minha redenção, graças à boa campanha do clube da Rua Bariri, dirigido pelo Paulinho de Almeida, lateral-direito do sensacional “Expresso” vascaíno. Retornei ao Botafogo com alguns meses de contrato a cumprir e me reapresentei à direção na expectativa de resolver a situação administrativamente, com o cabelo e uma barbicha começando a crescer.

No primeiro dia de treino, o técnico e o diretor de futebol me puxaram para uma conversa à beira do gramado. “Você está parecendo um tocador de guitarra ou cantor de iê-iê-iê”, zombou o dirigente. Não foi preciso dizer mais nada. Logo depois, fui proibido de receber o material para treinar e tive o contrato suspenso, mas o clube não acertou minha transferência. Criou-se um impasse que só se resolveu depois de tentativas infrutíferas de solução amigável, com a obtenção do “Passe Livre” na Justiça.

Foram longos meses proibido de treinar e sem receber. O desfecho é conhecido pela maioria. O Judiciário reconheceu que eu não poderia ficar à mercê do clube, impedido de jogar e de obter o meu próprio sustento. Fui o primeiro jogador a ser dono do próprio passe. Mais tarde, sem contrato e com o Flamengo à beira de não se classificar, voltei a jogar por algum tempo com o Zagallo de treinador. Até ser novamente substituído… •

Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de 2024.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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