Boaventura de Sousa Santos

Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Opinião

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Xerifes do mundo

Na Ucrânia, defrontam-se os imperialismos dos EUA, da Rússia e da China. O mais perigoso continua a ser o norte-americano

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Joe Biden e Vladimir Putin. Fotos: AFP
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Desde o primeiro momento condenei veementemente a invasão da Ucrânia por parte da Rússia, mas desde então salientei que houve forte provocação dos EUA para que ela acontecesse com o objetivo de enfraquecer a Rússia e travar a China. Nesta guerra defrontam-se três imperialismos, o norte-americano, o russo e o chinês. Sou contra todos eles e admito que, no futuro, os imperialismos russo ou chinês possam ser até mais perigosos, mas não tenho dúvidas de que, hoje, o mais danoso ainda é o dos EUA. Leva vantagem em dois domínios, o militar e o financeiro. Nada disso garante a sua longevidade. Aliás, tenho defendido que esse imperialismo está em decadência, e isso é um dos fatores de sua maior periculosidade atualmente.

A dinâmica do imperialismo norte-americano parece imparável, sempre alimentada pela crença de que a destruição que provoca, alimenta ou incita ocorrerá longe das suas fronteiras protegidas por dois vastos oceanos. Têm, pois, um desprezo quase genético pelos outros povos. Os EUA dizem intervir sempre a bem da democracia, mas deixam apenas destruição, ditaduras ou caos no seu rastro. A mais recente – e talvez mais extrema – manifestação dessa ideologia pode ler-se no último livro do neoconservador Robert Kagan, The Ghost at the Feast: America and the Collapse of ­World Order, 1900-1941 (Alfred Knopf, 2022). A ideia central da obra é que os EUA são um país único no mundo no seu desejo de tornar os povos mais felizes, livres e ricos, lutando contra a corrupção e a tirania onde quer que existam. São tão maravilhosamente poderosos que teriam evitado a Segunda Guerra Mundial se tivessem intervido a tempo de obrigar Alemanha, Itália, Japão, França e Grã-Bretanha a seguir a nova ordem mundial ditada pelos norte-americanos. Todas as intervenções de Washington no estrangeiro, por sinal, têm sido para o bem dos povos intervencionados. Segundo Kagan, desde as primeiras incursões militares – a guerra espanhola-americana de 1898 (com o propósito de dominar Cuba) e a guerra Filipino-Americana de 1899-1902 (200 mil mortos) – os EUA exercem essa missão altruísta.

Esse monumento à hipocrisia nem sequer considera a realidade trágica dos povos indígenas e da população negra dos EUA, submetidos ao mais violento extermínio e discriminação ao tempo dessas intervenções supostamente libertadoras no estrangeiro. O registro histórico revela a crueldade dessa mistificação. Invariavelmente, as intervenções foram ditadas pelos interesses geopolíticos e econômicos dos EUA, no que, aliás, os norte-americanos não são exceção. Ao contrário, esse é o caso de todos os impérios (veja-se a invasão da Rússia por Napoleão e por Hitler). O registro histórico mostra que a prevalência dos interesses imperiais dos EUA levou muitas vezes a eliminar aspirações de autodeterminação, de liberdade e de democracia, e a apoiar ditadores sanguinários, como vimos na Guerra das Bananas na Nicarágua (1912), no Irã de Mohammad Mossaddegh (1953), na Guatemala de Jacobo Arbenz (1954), no apoio ao ditador cubano Fulgêncio Baptista e na invasão da Baía dos Porcos, em 1961, no apoio ao golpe no Brasil (1964), à queda de Salvador Allende no Chile (1973) e na invasão do Vietnã, para combater a ameaça comunista (1965).

Mais recentemente, tivemos os exemplos da invasão do Afeganistão (2001), supostamente para se defender dos terroristas que atacaram as Torres ­Gêmeas de Nova York, ainda que eles não fossem afegãos e depois de ter apoiado os ­mujahideens contra a União Soviética por duas décadas, e da invasão do Iraque em 2003 para eliminar Saddam Hussein e as suas armas de destruição em massa que não existiam. Houve, ainda, a intervenção na Síria para defender rebeldes que, na sua maioria, são islamitas radicais, sem mencionar as incursões militares, por meio da Otan, nos Bálcãs, em 1995, e na Líbia, em 2011, deixando essa última nação completamente arrasada.

Houve sempre “razões benévolas” para essas intervenções, a contar com cúmplices e aliados locais. Que restará da mártir Ucrânia quando a guerra acabar? Em que situação ficarão os outros países da Europa, sobretudo a Alemanha e a França, ainda hoje dominados pela ideia falsa de que o Plano Marshall foi a expressão da filantropia abnegada dos EUA, à qual devem infinita gratidão? Como ficará a Rússia? Que balanço é possível fazer para além da morte e da destruição que a guerra sempre causa? Por que não surge na Europa um movimento forte a favor de uma paz justa e durável? •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1248 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE MARÇO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Xerifes do mundo”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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