Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

Viva o teto de gastos

‘No calabouço do cálculo, o economista sem coração considera democracia e capitalismo inconciliáveis’, escreve Luiz Gonzaga Belluzzo

O ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: Sergio Lima/AFP
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Na domingueira, após o almoço com meu filho, rodei os controles da tevê para acompanhar o noticiário. Naquele momento, corriam informações e entrevistas a respeito do desemprego e da fome no Brasil. Na sequência, o economista convidado pela emissora brandia os argumentos da austeridade, sempre assegurada pelo teto de gastos.
Meu filho, Carlos Henrique disparou:

— Pai, esse economista não tem ­coração?

Acudiu-me relembrar um artigo que escrevi sobre o filme As Confissões, de Roberto Andò. A atriz que encarna a ministra das Finanças do Canadá reproduz uma piada contada por outro personagem, o diretor-gerente do FMI, apelidado Daniel Roché: “Um candidato a transplante de coração recusa uma oferta de órgão retirado de um menino: não quero, é muito jovem. Em seguida, os médicos oferecem o coração de um gestor de hedge fund. Ele recusa porque o tipo não tem coração. Os médicos insistem: aceite o coração de um banqueiro central. Ele aceita porque esse coração nunca foi usado”.

Em entrevista concedida ao Financial Times nos idos de 2019, o Ministro da Economia, Paulo Guedes, apresentou suas conjecturas a respeito do coração e da razão. O jornal britânico relata que Guedes tocava o dedo indicador em sua têmpora. “As pessoas da esquerda têm cabeças ‘fracas’ e bom coração”, diz ele. “As pessoas da direita têm cabeças fortes e…” Ele procura a frase correta. “Corações não tão bons.”

Em depoimento no Congresso em 30 de junho de 2020, Paulo Guedes sapecou: “Você se torna um liberal ao longo de muitas décadas. Fazer um socialista leva cinco minutos porque ter um bom coração, querer ajudar os outros, isso tá nas grandes religiões, isso tá na solidariedade, na fraternidade, nós nascemos assim”.

Imagino que na Universidade de Chicago de Paulo Guedes o curso de História do Pensamento Econômico tenha contemplado a leitura da Fábula das Abelhas, de Bernard de Mandeville. Já na aurora do século XVIII, Mandeville desconfiava dos enganos do coração e levou a extremos a moral individualista, racionalista, utilitarista do liberalismo. Vícios privados se transmutam em virtudes públicas. Mandeville conta a história de uma colmeia próspera e progressista, ambiente em que   prevaleciam os vícios egoístas de todos os habitantes. Esse comportamento de coração duro foi interceptado, em certo momento, pela nostalgia da moral cristã, a nostalgia dos bons sentimentos. As abelhas resolveram retroceder, voltar às práticas do coração. A prosperidade se converteu em decadência.

Jeremy Bentham prosseguiu na faina Iluminista de desvencilhar o homem ocidental do Império da Crença para entregá-lo ao Reino do Cálculo. Em seu avanço, o racionalismo Iluminista rasgou a cortina da Ordem Revelada que enclausurava os homens e mulheres nas crenças e sentimentos no propósito de emparedá-los nos calabouços do Cálculo.

Em seu livro The Road to Serfdom, Friedrich Hayek exalta o empreendedor, o indivíduo independente “empenhado em definir e redefinir seu plano de vida, enquanto os trabalhadores cuidam, em grande medida, de se adaptar a uma situação dada”. Hayek considera a concorrência como a única forma social que estimula a inovação inédita sem a ingerência coercitiva e arbitrária da autoridade. As políticas de combate à desigualdade abafam o impulso inovador dos indivíduos.

Nos escritos político-jurídicos, Hayek não hesita em escolher o liberalismo diante dos riscos da democracia. “Há um conflito irreconciliável entre democracia e capitalismo – não se trata da democracia como tal, mas de determinadas formas de organização democrática… Há boas razões para preferir um governo democrático limitado, mas devo confessar que prefiro um governo não democrático limitado pela lei a um governo democrático ilimitado (e, portanto, essencialmente sem lei).”

As manifestações de Paulo Guedes e do seu guru, Hayek, sugerem uma rápida incursão às páginas do livro A Dialética do Esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer. Aí, os autores palmilham os caminhos que levaram o projeto das Luzes a se precipitar nos braços do mito. A recaída do Esclarecimento na mitologia, diz ele, não deve ser buscada tanto nas ideologias nacionalistas, pagãs e em outras mitologias modernas, mas no próprio Esclarecimento paralisado pelo temor da verdade.

“Paralisadas pelo temor da verdade”, as teorias econômicas liberais e suas políticas permanecem espremidas entre a mitologia do equilíbrio e os manuais de instrução das arrumadeiras ou de alfaiates especializados em ajustar fatiotas. A Economia confirma e reafirma Adorno e Horkheimer: “No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade”.

Viva o teto de gastos.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1168 DE CARTACAPITAL EM 29 DE JULHO DE 2021.

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