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Violência americana

Na raiz das tragédias nos EUA, a convicção de que a liberdade individual está acima da sociedade

Violência americana
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Protestos foram registrados em frente ao escritório da NRA após o massacre no Texas. Foto: Kevin Dietsch / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / Getty Images via AFP
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De tempos em tempos, os americanos são abalados por uma tragédia devastadora, como as que aconteceram nas últimas semanas. Dia sim, outro também,  meninos armados e paramentados  como se fossem participar de uma operação de guerra, atiram e matam colegas e professores da escola onde estudam. Se massacres como este tivessem ocorrido apenas uma vez, já seria caso da sociedade americana ficar com a pulga atrás da orelha.

Os Estados Unidos, desde sua formação colonial, se constituíram em uma forma sociocultural que privilegia a vitória a qualquer custo do indivíduo. Não por acaso, a sociedade americana erigiu as armas como condição da liberdade, ainda que essa liberdade signifique a aniquilação da vida do outro.

Estes episódios de matança se repetem com tal frequência e regularidade que não haveria surpresa se um americano encontrasse um elefante passeando atrás de seus ouvidos. É fácil culpar uma certa “cultura da violência”, disseminada nos lares indefesos pelos meios de comunicação. Se, de fato,  existe, a dita cultura da violência não é produzida nos bastidores das emissoras de televisão ou nas redações dos jornais. Ela é produzida no interior da sociedade americana. Há, nos Estados Unidos, um culto da violência e não é difícil perceber porquê.

Suas origens estão na concepção peculiar do povo sobre algumas questões cruciais. A liberdade individual, por exemplo, está acima das conveniências sociais. Quantas vezes o cinema e a literatura americana não celebraram a figura do cavaleiro solitário, aquele indivíduo dotado de uma coragem e de um senso de justiça extraordinários, destinado a impor a ordem e a moralidade  à sociedade corrupta e às instituições ineficazes? Nos filmes de faroeste, quase sem exceção, a moral da história era esta: o xerife é covarde, os juízes são corruptos e os bandidos audazes. Se a coisa é assim, nada mais resta ao homem de bem senão executar, pelas próprias mãos, os ditames da moral e da justiça, inscritos na ordem natural e, portanto, carregados na alma, desde o útero materno, pelos indivíduos.

Isto significa que o indivíduo é naturalmente bom, capaz de discernir entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A sociedade e as instituições, pelo contrário, são corruptas e corruptoras. A vida social impõe o compromisso entre interesses muitas vezes contrapostos e irreconciliáveis. São arranjos sociais que, não raro, impedem a realização da verdadeira justiça, aquela que está, desde a concepção, no coração dos homens. As  instituições da sociedade, sobretudo o Estado, com suas instâncias de controle, suas leis ambíguas e seus métodos de punição insuficientemente rigorosos vão transformando a justiça numa farsa, num procedimento burocrático e ineficaz.

Não por acaso, são tão bem esculpidas as figuras do xerife ou do policial que se desembaraça das limitações destas instituições corruptas e corruptoras para se dedicar à limpeza da cidade. A sociedade está suja, contaminada pelo vírus da tolerância. Só o herói solitário pode salvá-la, consultando a sua própria consciência, recuperando portanto a força da moral “natural” , aquela que Deus infunde no coração de cada homem.

Ao vingador tudo é permitido. Até mesmo matar inocentes. Aliás não há inocentes, porque os complacentes com este estado de coisas são igualmente corruptos.

O filósofo e historiador alemão ­Norbert Elias diz que, quando se empenham em examinar o problema da violência física na vida social, as pessoas, frequentemente, fazem a pergunta errada. Indagam como, vivendo em sociedade, uns cidadãos  podem agredir fisicamente ou matar os semelhantes.

Os fatos seriam mais bem com­pre­en­di­dos se a pergunta fosse formulada de modo diferente. A forma correta seria mais ou menos assim: Como é possível que tantas pessoas consigam viver normalmente juntas em paz, sem medo de serem atacadas ou mortas por pessoas mais fortes que elas, como hoje em dia é o caso na maior parte do mundo?

O filósofo chega a considerar a monopolização do uso da força pelo Estado como uma das invenções sócio-técnicas mais importantes da espécie humana. Estudioso do processo civilizatório, Elias não imagina como a sociedade civilizada possa sobreviver, sem a ação permanente dos agentes do Estado, treinados, educados e disciplinados para inibir os impulsos violentos de uns indivíduos sobre os outros, com o propósito do domínio ou do aniquilamento físico.

Mas a civilização nunca está a ­salvo de ameaças. Corre sempre perigo, ­como já havia prevenido Hobbes, o pai do pensamento político moderno. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Violência americana”

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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