

Opinião
Violência americana
Na raiz das tragédias nos EUA, a convicção de que a liberdade individual está acima da sociedade


De tempos em tempos, os americanos são abalados por uma tragédia devastadora, como as que aconteceram nas últimas semanas. Dia sim, outro também, meninos armados e paramentados como se fossem participar de uma operação de guerra, atiram e matam colegas e professores da escola onde estudam. Se massacres como este tivessem ocorrido apenas uma vez, já seria caso da sociedade americana ficar com a pulga atrás da orelha.
Os Estados Unidos, desde sua formação colonial, se constituíram em uma forma sociocultural que privilegia a vitória a qualquer custo do indivíduo. Não por acaso, a sociedade americana erigiu as armas como condição da liberdade, ainda que essa liberdade signifique a aniquilação da vida do outro.
Estes episódios de matança se repetem com tal frequência e regularidade que não haveria surpresa se um americano encontrasse um elefante passeando atrás de seus ouvidos. É fácil culpar uma certa “cultura da violência”, disseminada nos lares indefesos pelos meios de comunicação. Se, de fato, existe, a dita cultura da violência não é produzida nos bastidores das emissoras de televisão ou nas redações dos jornais. Ela é produzida no interior da sociedade americana. Há, nos Estados Unidos, um culto da violência e não é difícil perceber porquê.
Suas origens estão na concepção peculiar do povo sobre algumas questões cruciais. A liberdade individual, por exemplo, está acima das conveniências sociais. Quantas vezes o cinema e a literatura americana não celebraram a figura do cavaleiro solitário, aquele indivíduo dotado de uma coragem e de um senso de justiça extraordinários, destinado a impor a ordem e a moralidade à sociedade corrupta e às instituições ineficazes? Nos filmes de faroeste, quase sem exceção, a moral da história era esta: o xerife é covarde, os juízes são corruptos e os bandidos audazes. Se a coisa é assim, nada mais resta ao homem de bem senão executar, pelas próprias mãos, os ditames da moral e da justiça, inscritos na ordem natural e, portanto, carregados na alma, desde o útero materno, pelos indivíduos.
Isto significa que o indivíduo é naturalmente bom, capaz de discernir entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A sociedade e as instituições, pelo contrário, são corruptas e corruptoras. A vida social impõe o compromisso entre interesses muitas vezes contrapostos e irreconciliáveis. São arranjos sociais que, não raro, impedem a realização da verdadeira justiça, aquela que está, desde a concepção, no coração dos homens. As instituições da sociedade, sobretudo o Estado, com suas instâncias de controle, suas leis ambíguas e seus métodos de punição insuficientemente rigorosos vão transformando a justiça numa farsa, num procedimento burocrático e ineficaz.
Não por acaso, são tão bem esculpidas as figuras do xerife ou do policial que se desembaraça das limitações destas instituições corruptas e corruptoras para se dedicar à limpeza da cidade. A sociedade está suja, contaminada pelo vírus da tolerância. Só o herói solitário pode salvá-la, consultando a sua própria consciência, recuperando portanto a força da moral “natural” , aquela que Deus infunde no coração de cada homem.
Ao vingador tudo é permitido. Até mesmo matar inocentes. Aliás não há inocentes, porque os complacentes com este estado de coisas são igualmente corruptos.
O filósofo e historiador alemão Norbert Elias diz que, quando se empenham em examinar o problema da violência física na vida social, as pessoas, frequentemente, fazem a pergunta errada. Indagam como, vivendo em sociedade, uns cidadãos podem agredir fisicamente ou matar os semelhantes.
Os fatos seriam mais bem compreendidos se a pergunta fosse formulada de modo diferente. A forma correta seria mais ou menos assim: Como é possível que tantas pessoas consigam viver normalmente juntas em paz, sem medo de serem atacadas ou mortas por pessoas mais fortes que elas, como hoje em dia é o caso na maior parte do mundo?
O filósofo chega a considerar a monopolização do uso da força pelo Estado como uma das invenções sócio-técnicas mais importantes da espécie humana. Estudioso do processo civilizatório, Elias não imagina como a sociedade civilizada possa sobreviver, sem a ação permanente dos agentes do Estado, treinados, educados e disciplinados para inibir os impulsos violentos de uns indivíduos sobre os outros, com o propósito do domínio ou do aniquilamento físico.
Mas a civilização nunca está a salvo de ameaças. Corre sempre perigo, como já havia prevenido Hobbes, o pai do pensamento político moderno. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Violência americana”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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