Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Viola Davis e a importância dos professores em nossas vidas

Devemos trabalhar para que a escola seja um lugar de felicidade, onde nenhuma criança ou adolescente seja “apedrejado moralmente”

Créditos: Reprodução / Redes Sociais
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Estou fazendo aulas de inglês. Seguindo os conselhos do Filipe Duarte, meu professor, tenho assistido a filmes e séries com mais frequência para apreender melhor o idioma. Quase sempre, vejo produções que se relacionam com a minha vida, com o meu campo de estudo. Nesse sentido, ando cada vez mais apaixonada pelas personagens e discursos da Viola Davis.

No início dessa semana, encontrei um vídeo na página “Momentos Negros”, que apresenta um compilado de declarações da atriz hollywoodiana. Ao longo de seis minutos, Viola Davis conta sobre sua infância pobre. Filha de pai alcoólatra, a violência doméstica e a fome foram uma constante em sua caminhada: “Íamos para a cama e ouvíamos os ratos matando pombos no telhado. Faziam barulhos altos. Enrolávamos nossos lençóis no pescoço à noite, porque os ratos rastejavam por buracos na parede e podíamos ouvi-los comendo nossos brinquedos, pulando em cima de nossas camas. Eu sempre digo que urinei na cama até os 14 anos. Eu fiz de tudo para conseguir comida. Eu roubei para comer, eu entrei em enormes latas de lixo, cheias de larvas, por comida. Eu sacrifiquei a infância por comida. Eu cresci com uma vergonha imensa” – disse a vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante.

Em outra passagem, ao falar da vida adulta, Viola Davis lembrou o quanto sua trajetória escolar permaneceu viva por muito tempo: “Eu era traumatizada pelo passado. Eu era aquela garotinha fugindo de oito ou nove meninos que ficavam sempre dizendo: ‘Sua neguinha feiosa!’, ‘Você é feia!’, ‘Você é negra!’. É verdade que muito foi internalizado em mim e se manifestou por meio de baixo autoestima, através de relacionamentos ruins, não acreditando em mim”. Vi a Luana menina e a Luana mulher nessas falas. É impressionante como as histórias de nós, mulheres negras, em alguma medida se encontram, sobretudo, no que diz respeito à dor, o que já foi objeto de estudo de teóricas como Bell Hooks, Audre Lorde, Beatriz Nascimento e Vilma Piedade.

Diante de tantos reveses, de tantas adversidades, Viola lembra da importância de um mentor ou mentora, de uma referência positiva para que pessoas com experiências análogas às suas superem traumas e construam narrativas exitosas. Tive sorte. Ao longo da minha vida, encontrei várias pessoas que assumiram esse lugar e foram fundamentais para que eu chegasse até aqui. Dentre elas, o Heli e o Paco, professores que não permitiram que eu ficasse invisível em sala de aula, assim como acontece com milhões de meninos e meninas negras.

Estava na antiga 6ª série quando o Heli, que atualmente é professor da Faculdade de Educação da UFMG, pediu que minha turma produzisse um texto. Infelizmente, não me recordo o tema, mas jamais esquecerei da reação dele ao devolver a minha atividade. Com a mão no meu ombro, sorrindo, ele disse:

– Luana, você tem jeito de escritora! Um dia ainda vou ouvir falar muito de você!

Fiquei tão tomada pelas palavras do meu professor de História, que permaneci em silêncio. Não disse nada. Na hora do recreio, fui para um lugar bem distante do pátio. Sozinha, pensei no gesto do Heli. Senti que havia verdade nas palavras dele. Imaginei quanto tempo demoraria para que ele ouvisse falar de mim. Dez, vinte anos? Algo me dizia que eu podia e devia esperar.

Na 8ª série, o Paco, que hoje também é professor da FaE/UFMG, pediu uma redação. Tínhamos que escrevê-la tomando como base os versos da música “Perfeição”, da Legião Urbana. Sou capaz de escutar o que ele disse ao me entregar o texto:

– Menina! Isso aqui tá muito bom! Vou mostrar para o Roberto Drummond!

Após ouvi-lo, desejei que a aula terminasse. Precisava contar a alguém o que ele havia dito. Logo que bateu o sinal, saí correndo. Ao chegar em casa, dei de cara com o meu pai:

– Pai! Meu professor falou que vai mostrar o meu texto para o Roberto Drummond! Ele falou, pai!

Eu pulava, eu gritava, era como se eu pudesse abraçar o meu próprio corpo. Meu pai, que sempre ri de tudo, esboçou apenas um sorriso sem graça, pois não compreendia o motivo de tamanha euforia. Explico. Além da felicidade provocada pelas palavras do Paco, eu sabia quem era o Roberto Drummond, escritor que ficou conhecido nacionalmente após a publicação do romance “Hilda Furacão”. Na minha cabeça, essa era a maior prova de que eu havia me tornado uma garota inteligente, como tanto queria. Sendo assim, a partir daquele momento, ninguém mais seria capaz de me ofender ou humilhar – “a vida do preto brasileiro é toda tecida de humilhações” – disse sabiamente Nelson Rodrigues.

Em um trecho do vídeo, Viola Davis afirma: “Eu sabia que queria ser atriz porque queria ser alguém. Eu queria sonhar grande. Eu queria deixar uma marca”. Novamente, me vi nas palavras de Davis, pois, ainda menina, tinha a convicção de que ao me tornar escritora minha vida seria diferente, eu poderia superar as dificuldades materiais da minha família, criar condições para enfrentar o racismo que dilacerava o meu ser. É o que a atriz afro-americana chamou de “visão de futuro”.

Mais de vinte anos se passaram desde que meus professores prestaram atenção em mim, naquilo que, enquanto aluna do Ensino Fundamental, eu tinha de melhor: a escrita. A profecia do professor Heli se cumpriu. Em 2018, lancei “Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula”, que tem sido adotado em instituições dos Ensinos Básico e Superior. Paco esteve no lançamento. Era tanta lágrima que dava para encher a reserva da Cantareira, em São Paulo. No momento, estou escrevendo outro livro. O ato de escrever tem me levado a lugares que pessoas da minha cor dificilmente conseguem acessar.

Em minhas andanças como formadora de professores, sempre ouço colegas completamente consumidos pela burocracia escolar. Quando apresento a necessidade de se repensar a educação e as práticas pedagógicas, sou atravessada por uma série de indagações, muitas vezes carregadas de angústias: “Luana, e a BNCC?”, “Luana, e o conteúdo?”, “Luana, e o Ideb?” – como se a ação de ensinar tivesse como única finalidade atender a demandas e interesses externos.

Digo sempre que não podemos aceitar o lugar de meros transmissores de conteúdos. A escola deve ser também o lugar da escuta, do afeto, de revelar talentos, de oportunidades, de enfrentamento do racismo e das demais formas de discriminação. Enquanto docentes, devemos trabalhar para que a escola seja um lugar de felicidade, onde nenhuma criança ou adolescente seja “apedrejado moralmente”, assim como a Viola Davis e eu fomos.

No vídeo, Viola Davis disse ainda que podemos usar a dor e os traumas para transformar, para influenciar pessoas de maneira positiva. É o que tento fazer. Quero ser para os meus alunos o que o Heli e o Paco foram para mim.

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