Viajar é ir adiante, entender a nós mesmos e aos outros

A subjetividade enriquece a viagem objetiva - o deslocamento no território - e a recíproca também pode ser verdadeira

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Viajar também pode ser uma arte. Sem dúvida, é um ato cultural. Construímos a viagem.

Como grande parte das ações humanas, as viagens compõem-se de um lado objetivo e um subjetivo.

Há uma evidente relação dialética entre eles: a subjetividade enriquece a viagem objetiva – o deslocamento no território – e a recíproca também pode ser verdadeira.

Como exemplo de subjetividade viajante, cito o excelente livro de Leonardo Boff, Reflexões de um velho teólogo e pensador, da Editora Vozes.

Naquela obra, o escritor reporta-se ao encontro que tivera com o Dalai Lama. Na oportunidade, ao indagar ao líder tibetano qual a melhor religião, recebeu como resposta: “Aquela que te faz melhor”. Insistindo, perguntou: “O que me faz melhor?”. A resposta foi: “Aquilo que te faz mais compassivo, mais sensível, mais desapegado, mais amoroso, mais humanitário, mais responsável…”


Nestes dias, assistimos no Brasil a manifestações de intolerância religiosa (entre outras). Somos um país multicultural, com raízes históricas profundas nas culturas indígenas, africanas, europeias e orientais (inclusive do Oriente Médio).

Essa riqueza cultural permite-nos viajar por muitas culturas, em um único território.

Tratando-se de viagens, de deslocamentos, de pontos de vista, vale notar que essa riqueza religiosa, cultural, está em relação inversa com a riqueza econômica; subverte mesmo o apartheid geográfico daquela, na medida em que, por exemplo, encontraremos mais terreiros nos bairros pobres – portanto mais cultura afro-brasileira – do que nos ricos.

Entretanto, como é notório, as trevas rejeitam a luz, como a ignorância teme o conhecimento e o mal, o bem.

Nesta semana, dois episódios muito preocupantes: evangélicos neo-pentecostais ameaçaram terreiros em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e outros fizeram culto de “descarrego” em frente de terreiros, na Bahia.

Não são fatos isolados. Integram um projeto de caos, de empobrecimento cultural, de não alteridade, para que a ignominia reine.

Vale notar que esse projeto de dominação é internacional. No Oriente Médio, é promovido principalmente pela Arábia Saudita, por meio de madrassas, estruturas acopladas, lá, às mesquitas. Ocupam o espaço assistencial deixado pelo estado mínimo – que militantemente promovem – e nelas promovem, ao lado do assistencialismo, a intolerância religiosa, que contribuiu para o terror no Oriente Médio.

O belo das viagens é que nos permitem ir adiante, entendermos a nós mesmos e aos outros; buscarmos nossa tribo, sem deixar de dialogar com as demais, no entendimento de que formamos, todos – sem exceção -, parte de algo maior.

Por exemplo, a viagem linguística nos permite descobrir que, em russo, uma mesma palavra – mir – designa paz e mundo. Dessa maneira, podemos interpretar a paz como fruto da totalidade, da diferença e da diversidade.

De fato, o viajar subjetivo passa pela cognição da realidade, no tempo e no espaço; pela busca de significados nos significantes; para muitos – como o fundador da psicologia analítica Carl Gustav Jung – há certeza de que partilhamos todos um inconsciente coletivo.


Não há como negar que os níveis de leitura das culturas e da realidade são muitos e variam de acordo com nossas vivências. O próprio Cristo diz aos discípulos que teria muito mais coisas para dizer-lhes, mas que não o faria, pois eles ainda não estavam preparados para compreender, naquele momento.

Quem não conheceu pessoas sábias que mal tinham saído do local em que nasceram? Adélia Prado e Carlos Drummond de Andrade não são assim? Universais, sendo profundamente enraizados em seus territórios, fazendo da viagem interior um vetor para outros níveis de compreensão da realidade, que a transformam em prosa e poesia.

Uma verdadeira arqueologia do visível, resgatando o invisível, o emocional, o imanente. Antonin Artaud dizia que nós seres humanos temos muitos estados e uns mais perigosos do que os outros. Nessa arqueologia humana tão necessária, talvez tenhamos de empreender a viagem, acompanhados, como Dante em sua “Divina Comédia“. De preferência, como ele, por uma guia amorosa, que nos permita não apenas conhecer, mas também experimentar e viver a liberdade, a tolerância, a aceitação e o amor, pois, talvez, a entrada no paraíso não seja individual – como errônea e egoisticamente interpretamos – mas coletiva e vinculada a entrarmos junta e justamente com nossos inimigos, como aliás prevê a cultura oriental, resgatada por Tolstoi, no seu belíssimo “Calendário da Sabedoria“.

 

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