

Opinião
Via-crúcis
Como no caso do padre Júlio Lancellotti, há uma grande tendência de crucificar quem dedica a vida à defesa e ao amparo da pobreza


O padre Júlio Lancellotti, há décadas, é perseguido por acusações vilipendiadoras da sua imagem e honra. Todas as acusações revelaram-se inverídicas nos planos fático e jurídico. O pároco sempre enfrentou – e enfrenta – uma via-crúcis que jamais abalou seu compromisso irrenunciável e incessante para com o outro.
O padre Júlio sofre, agora, uma implacável perseguição que remonta à última eleição presidencial. A recente acusação, patrocinada pela extrema-direita paulistana, foi objeto de investigação e arquivamento. Entretanto, requentou-se o tema com intuitos marcadamente eleitoreiros. Coincidentemente, as acusações surgem no contexto de uma pauta eleitoral. Mais especificamente, a injusta acusação contra o padre Júlio objetiva arregimentar pautas da extrema-direita rumo às eleições municipais de São Paulo.
O professor-adjunto de Engenharia da Informação da Universidade Federal do ABC Mário Gazziro constatou que um vídeo atribuído ao padre é falso e utiliza “tecnologia deepfake”. O mesmo expert desqualificou, ainda, um estudo preparado pela extrema-direita sobre o mesmo vídeo. Mais do que imprestável para se constituir em elemento de prova contra o sacerdote, o vídeo evidencia artimanhas que podem se tornar corriqueiras com a evolução sem precedentes da Inteligência Artificial.
É preciso apurar responsabilidades, inclusive criminais, em face dos acusadores. Ademais, precisamos nos preparar, no debate público degradado que temos, a vídeos falsos e difamatórios. A Inteligência Artificial desafia, sem precedentes, a distinção entre real e falso. Cabe lamentar a absoluta falta de senso de retidão mínima e de moralidade vivenciadas no debate público do nosso tempo.
O padre Júlio, notoriamente, dedica-se ao incansável cuidado de pessoas em condição de rua, segmento social que figura dentre os mais vulneráveis no todo social. Por longas décadas, envida esforços para que as pessoas em condição de rua sejam acolhidas com dignidade mínima. Por essa razão, ele novamente é vítima de uma persecução pública que visa destruir sua imagem. Pela via reflexa objetiva-se, ainda, esfacelar laços de compaixão que se estabelecem com pessoas em situação de elevada vulnerabilidade social.
O enfrentamento da vulnerabilidade social por parte do padre Júlio, bem como a proteção de quem vive em situação de rua, não só evidencia o elevado compromisso cristão do pároco, mas uma humanidade que transcende a qualquer compromisso institucional. O padre Júlio é, mais do que alguém comprometido com deveres sociais, genuinamente altruísta. Atacado, sairá ainda mais forte. Sua missão jamais será cessada em razão de denúncias infundadas que apenas descredibilizam seus arregimentadores.
Outra questão que se coloca, além dos citados desafios impostos pela Inteligência Artificial, é a incessante tentativa da nossa extrema-direita em fragilizar o nosso pacto social e abalar a relação de pertencimento que nos une. O ataque ao padre Júlio é, portanto, um ataque à relação que o pároco estabelece com aqueles em situação de vulnerabilidade social. A extrema-direita é contrária a vínculos dessa natureza, o que nos leva a alertar que a história humana não ocorre por meio de fases estanques, como às vezes a descrição didática em períodos transparece ao inadvertido.
Ao contrário, ela se revela pelos processos complexos, nos quais elementos de conformação política e social do período anterior podem ser – e comumente são – identificados nos subsequentes. Inexistem, inclusive, garantias contra retrocessos e involuções civilizatórias. Só há ordem na mera descrição histórica, bem como nas tentativas de sua compreensão pelos manuais escolares. Na história vivida prevalece o caos.
Assim considerando, o ataque ao padre Júlio, longe de mera manifestação isolada de ataque à sua honra e imagem individualmente consideradas, visa, em escala mais ampla, inocular medo e ódio no seio social. O recado dado é que, sob pena de perseguição implacável, a vulnerabilidade das pessoas em situação de rua não deve ensejar acolhimento. A aversão aos necessitados, bem como aos poucos que a enxergam, visa dissipar, por meio de involução civilizatória, desumanização e degradação dos valores básicos que nos unem. A extrema-direita segue insaciável em busca da fragilização dos sentidos e dos espaços do humanismo e, em escala mais ampla, da relação de pertencimento.
Ao menos desde Jesus de Nazaré, há uma grande tendência na humanidade de crucificar aqueles que dedicam sua vida à defesa e ao amparo da pobreza. Que líderes religiosos de valor como o padre Júlio tenham o peso de sua cruz aliviado pelo respeito e admiração das verdadeiras pessoas de bem. •
Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de 2024.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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