Opinião

Vemos a morte tornar-se corriqueira e a vida, vilipendiada

Pobre país que perde suas maiores riquezas, inclusive a maior, a cultural

Foto: Alex Pazuello/Semcom Foto: Alex Pazuello/Semcom
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“Somos refugiados em nosso próprio território”.
Ailton Krenak.

Acho que assim que nos sentimos todos, sob o governo dos maus.

Para o “I Ching”, livro de sabedoria chinesa, quando governam os bons até os maus ao bem se conformam. Infelizmente, a recíproca também é verdadeira.

De fato, vemos uma rede católica de televisão, a Rede Vida, fundada por D. Luciano Mendes de Almeida – um profeta, veicular ao longo da programação um jingle que diz: “passou, passou, passou…”, clara referência à pandemia, que, ao contrário, acaba de vitimar mais de 100.000 pessoas no Brasil e segue em ascensão, pela incúria e incompetência de um governo genocida, que tem como ministro da saúde um general.

Com efeito, o cacique Krenak sintetizou bem o sentimento de deslocamento de todas as pessoas de bem, nesta triste quadra da história do Brasil.

Vemos por todos os lados a morte tornar-se corriqueira; a vida, vilipendiada; a nação, destroçada.

Pior, não apenas a vida humana é menosprezada, mas também a animal e a vegetal.

Vale lembrar que outro profeta, falecido recentemente, D. Pedro Casaldaliga, pregava: “matar, jamais”.

Entretanto, o desmatamento da Amazônia – e não apenas – cresce em ritmo vertiginoso, sob os olhares cúmplices das Forças Armadas.

Territórios indígenas são invadidos por garimpeiros e mineradores, contaminando o solo, a vegetação, os animais e os seres humanos, primeiros habitantes desta terra desvalida.

Pobre país que perde suas maiores riquezas, inclusive a maior, a cultural.

Nesse sentido, vale reler as palavras de Ailton Krenak, em “Ideias para adiar o fim do mundo”, da Companhia das Letras: “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre a adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”.

Os bons gostam do que é bom, ao contrário dos porcos, que pisam as pérolas. Naquele livro, Krenak expande as reflexões, em direção da Pátria Grande, citando um de seus melhores pilares culturais, cidadão do pequeno Uruguai “…me alimento da resistência continuada desses povos, que guardam a memória profunda da terra, aquilo que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo. Nesse livro e em As veias abertas da América Latina, ele mostra como os povos do Caribe, da América Central, da Guatemala dos Andes e do resto da América do Sul tinham convicção do equívoco que era a civilização”.

Prossegue: “Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente…Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos”.

Em contraposição ao respeito que D. Pedro Casaldaliga tinha pelos indígenas e suas culturas, surgiram recentemente denúncias de que mulheres de militares estariam tentando aculturar mulheres indígenas, buscando induzi-las à estética dos modismos ocidentais.

A propósito, Gustavo Barcellos, em “Mitologias Arquetípicas”, da editora Vozes, observa: “Nossa cultura separou o que a cultura grega não separa: o ético do estético…é belo porque é bom, é bom porque é belo. ‘Belo’ e ‘Bom’ não estão separados…belo e bom, estética e ética: a compreensão de que não existe uma coisa sem a outra”.

Portanto, ao violentarem a estética indígena, violentam a própria ética daquelas sociedades, crime de ainda maior gravidade.

Pior, o desgoverno genocida empenha-se na dominação religiosa dos indígenas, para obter a política, todo o contrário do que pregava e vivia D. Pedro Casaldaliga em seu apostolado com os povos originários, ribeirinhos e quilombolas.

Como desgoverno da morte, não inovam Bolsonaro e cúmplices, como nos mostra Decio Freitas, em “Missões – crônica de um genocídio”, ao relatar como se instrumentalizou a catequese dos Guarani: “Para barrar o acesso português à Cidade da Prata, cumpria ocupar e colonizar o vasto território que o Tratado de Tordesilhas estendia até o Atlântico. O diminuto e solitário grupo de espanhóis – em 1622 havia apenas 4.500 espanhóis, entre nativos da Espanha e criollos – não podia realizar semelhante empresa. Escasseavam à Espanha recursos demográficos para a ocupação e colonização. A Coroa não dispunha tampouco de recursos militares para dominar a massa Guarani dispersa pelo território. Em 1597, havia em Assunção apenas 200 ‘homens que podem pegar em armas’. Daí que Hernandarias de Saavedra, governador do Paraguai, tenha feito ver ao rei da Espanha a impossibilidade de dominar militarmente os Guarani. O que convenceu Felipe II de que os Guarani ‘só podiam ser submetidos pelos ensinamentos do Evangelho (1608). Simultaneamente, a colonização da margem oriental do rio Uruguai daria à prata de Potosi uma saída para o Atlântico – mais segura, mais barata e mais rápida que a do Pacífico…Não havia, portanto, senão uma maneira de ocupar aqueles territórios: coloniza-los com os próprios índios Guarani. Uma vez que não se podia fazer isso pela força, restava apenas submete-los, como disse Felipe II, “pelos ensinamentos do Evangelho’. A solução seria reuni-los em pontos estratégicos do território, ou seja, as reduções ou missões, empresa encomendada à Companhia de Jesus”.

À luz dessa estratégia de dominação, histórica na Pátria Grande, a profecia de D. Pedro não poderia ter sido mais ao gosto do Pai, a quem entregou a própria alma, em Seu dia.

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