Ultimamente, em toda palestra que dou ou debate no qual participo, há uma pergunta onipresente, um ar denso, um elefante branco no meio da sala até que alguém verbalize e alivie o clima. Todo mundo pensa, todo mundo se pergunta: “Vai ter golpe?” Sempre respondo o mesmo, pois não há muito mais que eu possa responder, embora haja muito mais a ser respondido: “Não sei, mas vamos aos dados”.
E quais são meus dados? Tanto eu quanto outros pesquisadores estamos há muito tempo a nos debruçar sobre a militância radical bolsonarista offline e online. Faz algum tempo que aponto uma hiper-radicalização de uma parte da base, que está fortalecida, dinamizada, compartilhando discursos e narrativas coesas e comuns. Uma destas narrativas, já cristalizada neste núcleo, é a de que Lula só pode ganhar estas eleições se ele fraudar o processo. Esta afirmação se fundamenta no dado “bolsocientífico” de que o povo quer Bolsonaro, o povo vai votar em Bolsonaro e, portanto, qualquer vitória de Lula é impossível, a não ser que seja fraudada. Ponto. Sem mais nem menos. Segundo esta narrativa, diante do cenário da derrota bolsonarista, sair às ruas não é um ato antidemocrático, golpista, é um ato de defesa democrática, é um ato de verdadeiro patriotismo, de cidadãos de bem preocupados com a degradação institucional nacional, pois as instituições, é sabido por todos, são petistas em corpo e alma. Portanto, democratas são eles, que defendem o Brasil da deterioração, da fraude e da mentira.
Bem, outra peça da engrenagem na narrativa é a construção do inimigo. Os inimigos tradicionais de Bolsonaro sempre foram preferencialmente o PT e a esquerda numa definição vaga e difusa onde muitos cabiam. Gradualmente, o foco da raiva e da violência dos fascistóides virou-se, no entanto, em direção ao Supremo Tribunal Eleitoral. O ódio por Lula, aos poucos, deu espaço ao ódio pelo ministro Alexandre de Moraes. A figura do grande corrupto que se apropriou do Estado para roubar cedeu lugar à figura do grande inquisidor, que persegue e inferniza a vida dos cidadãos de bem bolsonaristas, de tal forma que hoje em dia quem atiça as hostes bolsonaristas é sobretudo Alexandre de Moraes e tudo o que ele representa. E o que é que ele representa? O processo eleitoral. Porque, vejam, o foco da ira militante não é a urna eletrônica, o foco da ira militante é o processo eleitoral, algo muito maior, muito mais potente, muito mais perigoso. Não só a urna está sujeita à fraude, é o processo completo, é a Justiça eleitoral, é o TSE, são os ministros. Tudo. Tudo é uma fraude. A retórica completa está bem preparadinha, embrulhada para presente caso Lula ganhe. Esses são os dados que eu tenho.
Daí derivam algumas especulações:
É possível que parte destas hostes violentas, hiper-radicalizadas,ao se sentir empoderada e motivada por Bolsonaro, cometa algum ato violento? Empoderada, motivada e… armada. É muito provável. O único elemento que pode nos salvar deste tipo de situação é que, no fundo, atrás de cada fascista se esconde um covarde, mas, é igualmente verdade que os indivíduos covardes, em massa, são capazes das maiores atrocidades.
•
É possível que haja uma ruptura institucional comandada por Bolsonaro? Eu acho (e aqui vai meu palpite e não meus dados) que este cenário é mais improvável. Intuo que Bolsonaro energiza suas bases para ter um ás na manga, uma moeda de troca para negociar, impedir que ele e sua família acabem na cadeia. Vender-se
como uma ameaça para depois se apresentar como solução pode fazer parte de uma estratégia que livre o clã de um destino juridicamente duvidoso. Para isso, ele tem que representar perigo, perigo de verdade, pois o perigo de verdade é um bom instrumento de negociação. Mas, insisto, é só palpite, e, como palpite, não tem validade alguma. Nós, cientistas, estamos acostumados a trabalhar com hipótese, observação, teoria e dados, só que a mente de um fascistóide com poder acuado é um mistério complexo de resolver. Desconfiem de analistas que tenham respostas prontas, “sim” ou “não”.
•
Enfim, só sei que nada sei, mas os dados não apontam coisa boa. Os dados apontam minimamente uma instabilidade, conflito, confusão, ameaça. Os dados indicam fragilidade e uma democracia que continua em frangalhos. O próximo 7 de Setembro será um teste importante. Veremos.
•
Golpe, não golpe, devemos defender nossa democracia como se estivéssemos muito perto de perdê-la, se é que já não a perdemos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Vai ter golpe?”
Para proteger e incentivar discussões produtivas, os comentários são exclusivos para assinantes de CartaCapital.
Já é assinante? Faça login