

Opinião
Unidos contra a hecatombe
O abraço trocado entre Lula e Marina, duas lideranças há anos afastadas, encarna a nossa possibilidade de defesa perante inimigos tão ferozes


Eu ainda era criança quando tio Eduardo (Briguilha, para os íntimos) me contou uma história incrível sobre dois brasileiros legendários de origem camponesa: o cangaceiro Antônio Silvino e o revolucionário Gregório Bezerra. Nascidos em Pernambuco a 300 quilômetros e 25 anos de distância um do outro, lutaram contra a injustiça social de modos muito diferentes, mas igualmente altivos.
Radicalizado pelo assassinato de seu pai, Silvino tornou-se, no fim do século XIX, o mais respeitado chefe cangaceiro até o surgimento de Lampião. Desafiou interesses poderosos, tirou dos ricos para dar aos pobres e arrancou os trilhos ferroviários da empresa inglesa Great Western, que, em nome do progresso, desapropriava terras campesinas sem indenização.
Silvino foi preso em 1914 e só deixaria o cárcere em 1937, pouco antes de morrer. Em 1917, na Casa de Detenção do Recife, veio a conhecer e proteger um adolescente franzino e analfabeto que havia sido preso na primeira greve geral do Brasil, por direitos como a jornada diária de oito horas de trabalho e o descanso semanal. Era Gregório Bezerra. O jovem era valente e havia sido isolado para não sofrer violência, mas o homem maduro o ensinou a conviver pacificamente com os outros prisioneiros.
Silvino aprendera a ler na prisão e sua opinião sobre o que lia nos jornais forjou a formação política de Gregório. Foi através dele que o rapaz ficou sabendo da Revolução Russa. Nas palavras do ex-cangaceiro, em Memórias (Boitempo, 2011), “o povo reunido é mais poderoso do que tudo e a revolução dos bolcheviques vai se espalhar pelo mundo. A lei do maximalismo – era assim que se referia ao marxismo –, com um homem como este (Lenin) que está no poder, vai triunfar. Esse homem tem muito juízo e muito talento na cabeça. Ninguém pode com ele”.
Bezerra deixou a prisão quatro anos depois e se alistou no Exército, onde viria a se alfabetizar e a se fortalecer até se tornar sargento instrutor de educação física. Em 1930, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro e, em 1935, foi novamente preso, após a tentativa frustrada de derrubar Getúlio Vargas e combater o fascismo integralista. Na enfermaria da Casa de Detenção, deparou-se com sua primeira visita. Era o velho amigo Antônio Silvino, que trazia solidariedade, mas também uma dura crítica à insurreição fracassada. Segundo Briguilha, Silvino teria dito nessa ocasião: “Vocês maximalistas não aprenderam nada. Demora mil anos para nascer um outro Lenin”.
Já vão longe o cangaço e as revoluções armadas, mas, infelizmente, ainda não nos livramos nem do latifúndio nem do fascismo. Em duas semanas, iremos às urnas e a força da nossa democracia será medida por nossa capacidade de fazer eleições sem voto de cabresto nem terrorismo. Infelizmente, entretanto, a violência política vem crescendo. Os recentes assassinatos de lulistas por bolsonaristas projetam a sombra aziaga da guerra civil.
É por isso que me enche de esperança o abraço trocado entre duas lideranças legendárias de nosso tempo, afastadas há anos, mas reunidas novamente pelo bem do País. Irmanados pela origem rural, pela sobrevivência à fome, pelo compromisso com a massa trabalhadora e pelo sobrenome Silva, Lula e Marina encarnam o que de melhor o povo brasileiro já produziu em sua própria defesa perante inimigos tão ferozes.
Não sei se demora mil anos para nascer um outro Lula ou outra Marina, pois a cada dia, nas favelas e nos grotões deste país, nascem muitas crianças com esse potencial. O que sei é que tão cedo não teremos outra chance de consertar o País. A China já decolou rumo ao século XXI, o Hemisfério Norte se descola cada vez mais do Sul global, enquanto seguimos na contradição que Lévi-Strauss e Caetano Veloso apontaram com precisão: ainda estamos em construção, mas já somos ruína.
Por isso é tão belo o reencontro de Marina e Lula. Precisamos do mais amplo arco de alianças para reconstruir o que ainda resta após a hecatombe socioambiental do atual governo. Precisamos de pessoas tão diferentes quanto Sônia Guajajara e Geraldo Alckmin, as Luizas Erundina e Trajano, Guilherme Boulos e Alexandre Kalil, Ricardo Galvão e Fátima Bezerra, Talíria Petrone e Henrique Vieira, Natália Bonavides e Marcelo Freixo, Douglas Belchior e Eduardo Gianetti, Erika Hilton e André Barros, Tatiana Roque e Joênia Wapichana, Marília Arraes e Fernando Haddad.
Precisamos de todo o nosso talento, técnica, amor e sabedoria para, finalmente, honrar as lutas de pessoas como Antônio Silvino e Gregório Bezerra. A esperança está no ar. O Brasil abre suas asas para voar. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1226 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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