Eloisa Artuso

Pesquisadora, educadora, designer estratégica e cofundadora e diretora executiva da Febre, plataforma de pesquisa, estratégia e conteúdo multimídia

Opinião

Uma transição socialmente justa para a economia circular na moda

Se tratarmos a circularidade dentro da mesma lógica de crescimento e desenvolvimento com a qual estamos acostumados, não iremos muito longe

Seleção de roupas de 2ª via. Foto: Upparel
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A pauta da economia circular de moda tem ganhado cada vez mais força, no mundo e aqui no Brasil. Já existem muitas soluções e tecnologias para viabilizar a transição mais ágil do tradicional modelo linear (‘extrair-produzir-descartar’) para um modelo circular, mais sustentável, que se concentra na redução de desperdícios e na reutilização de recursos. No entanto, outras tantas soluções – e regulamentações – ainda precisam ser criadas, desenvolvidas, escaladas ou adaptadas para se adequar a diferentes contextos e responder a variados desafios. Há ainda a necessidade de infraestruturas que permitam novos métodos de produção, logística e desenvolvimento de produtos, além de processos formativos que insiram ou capacitem forças de trabalho para atuar nesse novo sistema.

Estamos, portanto, falando da transformação de todo um sistema, complexo, que não envolve somente questões técnicas e materiais, mas também mudanças de mentalidade, cultura e comportamento. Isso afeta, sobretudo, a forma como nos relacionamos enquanto sociedade e com a natureza, porque se tratarmos a circularidade dentro da mesma lógica de crescimento e desenvolvimento com a qual estamos acostumados, não iremos muito longe.

Por exemplo, “criar e reciclar ilimitadamente” como promete o conceito de Cradle to Cradle, uma das vertentes da circularidade voltada para processos industriais, design e desenvolvimento de produtos e serviços, traz consigo contradições. Simplesmente porque dá a ideia de que podemos continuar produzindo ilimitadamente – o que não cabe na nossa realidade, em um planeta de recursos finitos que enfrenta uma crise climática e inúmeras desigualdades sociais. O ilimitado, nesse sentido, parece operar dentro da lógica de desenvolvimento em que prevalece o crescimento infinito, que coloca o lucro acima das pessoas e da natureza e nos deixou em meio às crises em que nos encontramos hoje.

Sempre gosto de voltar ao pensamento de Donella Meadows, cientista, professora, escritora e especialista em sistemas, que nos propõe enxergar a relação entre estrutura e comportamento para começar a entender como os sistemas funcionam. Ou seja, o pensamento sistêmico nos ajuda a entender que uma camiseta não brota na prateleira da loja, mas que essa peça é só uma parte de uma longa e complexa cadeia produtiva globalizada, que passa por nós, mas não termina aqui, talvez ela passe ainda por mais algumas mãos (quais?) até chegar a algum aterro ou mesmo um lixão.

Para debater sobre algumas das implicações sociais na transição (justa) para uma economia circular na moda, participei recentemente de um painel de discussões com a dra. Bruna Petreca e o Ricardo O’Nascimento, pesquisadores do Textiles Circularity Centre, da Royal College of Art, do Reino Unido. A conversa fazia parte do evento Brazil: Creating Fashion for Tomorrow, organizado na Embaixada Brasileira em Londres, que abriu a programação da London Fashion Week. Guiados por valores socioambientais e culturais, procuramos abordar, de um lado, como produtos e experiências podem ser projetados para envolver os consumidores como participantes ativos da economia circular. Por outro, buscamos explicitar as lutas contra os desperdícios gerados pelo fast fashion e a necessidade de se criar novos modelos de negócios, assim como contranarrativas na moda, a partir da perspectiva de justiça social.

Ainda que o debate focasse no papel dos consumidores, buscamos ampliar essa categoria para a de cidadãos, ativos, conscientes e responsáveis. Isso porque cultura do consumo nos ensina que podemos resolver nossos problemas através do consumo, ou seja, nos faz acreditar que escolhas de consumo pessoal podem, supostamente, gerar mudanças sistêmicas. Mas soluções individuais, apesar de importantes do ponto de vista de conscientização e engajamento do indivíduo, podem ter pouco ou nenhum efeito para lidar com as desigualdades em um planeta em risco.

Isto é, se quisermos discutir a economia circular a partir da justiça social e garantir o bem-estar, a prosperidade humana, de forma que ela seja, de fato, mais sustentável para todas e todos, precisamos confrontar o sistema que queremos transformar. Caso contrário, a circularidade pode continuar operando dentro das estratégias de negócios como de costume, fazendo-os seguir crescendo ilimitadamente. Um bom exemplo aqui são os esquemas de devolução de peças usadas em postos de coletas em lojas. Uma opção conveniente para os consumidores devolverem as suas roupas indesejadas diretamente às marcas e varejistas de fast fashion, que prometem dar uma segunda vida aos itens descartados, seja através da revenda, doação ou da reciclagem para a produção de novos produtos.

Mas até que ponto esses programas de devolução cumprem as suas promessas e abordam de forma eficaz o problema sistêmico da superprodução e hiperdescarte gerados pela indústria? Por meio de rastreadores escondidos em peças de roupas depositadas em postos de coleta de lojas, a Changing Markets Foundation rastreou, em tempo real, 21 itens enviados a dez marcas (entre elas H&M, Zara, C&A, Nike e The North Face) em lojas na Europa. Depois de 11 meses de rastreamento, os resultados mostram a discrepância entre as promessas das marcas e o destino real das roupas coletadas: somente 5 peças foram revendidas no mercado local; 7 passaram pelo processo de downcycling, em que o material é transformado em produtos de qualidade inferior, como forração (e não em novos tecidos para vestuário); o restante das peças foi destruído, perdido (em postos de coleta ou ao longo do caminho) ou enviado para a África (o que abre uma importante discussão sobre colonialismo de resíduos e a falta de responsabilização dos países do Norte Global frente ao Sul Global – vide as montanhas de lixo têxtil no deserto do Atacama).

Outro exemplo, esse bem brasileiro, é a realidade dos catadores nas grandes cidades do país. Para quem já passou pelas ruas do Brás ou Bom Retiro, importantes polos de produção têxtil e vestuário na cidade de São Paulo, deve ter se deparado com as montanhas de descarte nas calçadas: são descartadas 45 toneladas de resíduos têxteis, por dia, só no Brás. O potencial de reciclagem nessas regiões seria enorme, mas não há um sistema de regulamentação e responsabilização eficaz de gerenciamento de resíduos que permita que isso aconteça. Muitas vezes, a coleta é feita de forma autônoma por catadores como mostra esse vídeo feito pelo Pimp My Carroça. Pedro Luíz da Silva, o catador retratado, recebe apenas pelos resíduos que vende para quem recicla, mas poderia receber de forma justa pelo valioso serviço prestado. Mas quem deveria pagar por esse serviço?

Assim, durante o debate, nos perguntamos: dos catadores nas ruas de São Paulo aos cidadãos dos países africanos que precisam gerenciar o descarte dos países do Norte, a transição para a economia circular irá considerar o papel fundamental e o tremendo impacto gerado nesses grupos? Como nós, consumidores-cidadãos, participamos ativamente na transição, de forma a gerar impactos reais e proporcionar o bem-estar para todos dentro desse sistema? Quem precisa de justiça social e climática na moda? Quem devemos cobrar, como fazemos pressão? Quais mudanças são, verdadeiramente, necessárias?

As reflexões giraram em torno do papel dos governos na criação de regulamentações (ou implementação e fiscalização das já existentes, vide a Política Nacional de Resíduos Sólidos brasileira) e políticas públicas que apoiem a transição para a economia circular. Assim como, a importância de estabelecer limites, novas políticas e estratégias para que as empresas possam, realmente, colaborar para acelerar a transição. Incentivos e fundos para fomentar pesquisas e inovação de materiais e processos são também fundamentais, porque precisamos de suficiência material e segurança.

A Donella Meadows diria que “os tomadores de decisão são resistentes às informações de que precisam! Não prestam atenção, não acreditam, não sabem interpretar.” E que “as pessoas neste sistema estão tolerando comportamentos danosos porque têm medo de mudanças. Porque não confiam que um sistema melhor seja possível. Eles sentem que não têm poder para exigir ou trazer melhorias.” Mas podemos. E devemos. Esse é nosso papel, não como consumidores, mas como pessoas que desejam um mundo melhor, em que todas e todos possam florescer. Sem crescimento ilimitado, mas com bem-estar e prosperidade. Precisamos de sistemas que criem culturas e culturas que criem sistemas. Precisamos criar contranarrativas que se tornem tão amplamente compartilhadas que governos, empresas, pessoas, comunidades, cidades se moldem em torno dessas maneiras alternativas de ver o mundo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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