Opinião

Uma revolução silenciosa instala-se

Vemos, cada vez mais, os jovens romperem as rígidas barreiras de gênero e namorarem, alternadamente, jovens do sexo oposto e do próprio

Parada LGBT de São Paulo. Foto: Paulo Pinto/FotosPublicas.
Apoie Siga-nos no

“Para mim, a felicidade é o equilíbrio no fio da navalha”.
Vinicius de Moraes.

Em “A felicidade das pequenas coisas” (Editora Vozes), Anselm Grün complementa aquele pensamento do Poetinha: “Só posso transformar o que amo. O que recuso permanece em sua forma negativa.”

Vemos, cada vez mais, os jovens romperem as rígidas barreiras de gênero e namorarem, alternadamente, jovens do sexo oposto e do próprio.

Uma revolução silenciosa instala-se.

Essa mudança, epocal, parece confirmar a reflexão de Clarice Lispector em “Aprendendo a viver” (Editora Rocco): “Aliás eu só sei em todas as circunstâncias ser íntima: por isso sou mais calada.”

Assim, essa transformação acontece de forma silente: por ser íntima demais não pode admitir outra forma.

Lutas são travadas no interior das famílias, das escolas, dos locais de trabalho e até das igrejas.

O quadro mais amplo é o da busca por liberdade, talvez a mais íntima das sensações e das concepções: quase digitais, tão sulcadas e tão individuais que nenhum sistema totalitário, como o capitalismo, pode suportar.

Rompem-lhe desde a estrutura de poder até a forma de consumo de massa. Sem ambas, torna-se dificilíssima, se não impossível, a manipulação. A hegemonia da falsa liberdade, baseada na competição pelo poder, pelo dinheiro e por certa composição conjugal esfacela-se.

Naquela mesma obra de referência, Clarice alumbra-nos: “É preciso antes saber, depois esquecer. Só então se começa a respirar livremente.”

Eis aí uma radiografia da apropriação do conhecimento: conhecer, digerir, torná-lo próprio; mesmo e outro.

O simples segredo de um bom resumo: ler e reescrever o conteúdo principal, atendo-se apenas ao mais importante. Como deveríamos fazer nas relações amorosas, de todo gênero, e na própria vida.

Cuidarmos dos saldos, do atacado, numa chave de leitura mais livre.

No campo político, colecionamos atualmente derrotas, a boiada passa solerte, tangida pelos interesses do capital financeiro internacional e estados corsários, Estados Unidos da América à frente, seguidos bem de perto pela Europa. A anunciada deportação de Assange para os EUA, por parte do Reino Unido, não poderia ser mais simbólica.

Porém, na América Latina, a primavera instala-se: Honduras, cuja soberania foi sistematicamente violada pelos EUA ao longo da História, acaba de eleger Xiomara, a primeira presidenta da república, de esquerda!

No Chile, o jovem candidato da esquerda, Boric, lidera as intenções de voto para o segundo turno!

No Peru, a tentativa de golpe parlamentar contra o presidente Pedro Castillo fracassou!

Sempre Clarice, na obra citada, anuncia-nos o porvir da libertação, que poderá ser continental: “Muito antes de vir a nova estação já havia o prenúncio: inesperadamente uma tepidez de vento, as primeiras doçuras do ar. Impossível! impossível que essa doçura de ar não traga outras! diz o coração se quebrando.”

Como não acreditar? Por exemplo, em artigo publicado em CartaCapital, nr. 1181, intitulado A ponta do iceberg, os professores André Frazão Helene e Gilberto Fernando Xavier, do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da USP, fazem um diagnóstico preciso e profundo do atual contexto brasileiro, o qual, ouso dizer, tem a exatidão de um raio X, de um exame de imagem, quase infalíveis para nós, tão ciosos da confiança na visão. Com toda a propriedade, afirmam os cientistas: “Nesse contexto, o golpe de 2016 é mais bem explicado pela hipótese de que a interrupção do desenvolvimento brasileiro, por meio dos crescentes investimentos realizados em ciência e educação, foi parte de uma estratégia para nos manter no atraso, dependentes dos países desenvolvidos e incapazes de resolver os nossos próprios problemas. Ao deixarmos de investir em ciência e tecnologia, e na formação de recursos humanos qualificados, abrimos mão do futuro. Como consequência, há o risco de nos tornarmos escravos dos povos que realizam esses investimentos.”

Os professores em apreço resumiram à perfeição as razões e as consequências do golpe de estado, de forma clara, direta, didática, traço distintivo dos bons educadores.

Com mestres e alunos revolucionários, muito se poderá fazer.

Podemos mesmo hipotizar com Ludwig Wittgenstein que: “A única tarefa que restou à filosofia é a análise da linguagem.”

Que tal um coquetel de Wittgenstein com Vinicius? Razão com emoção! Aí vai o pensamento do maior embaixador que o país já teve (depois do Barão do Rio Branco): “Sou essencialmente um poeta, e como saboreio plenamente tudo que a vida pode oferecer de bom e de belo. Mas prefiro a tristeza à alegria, porque acho-a mais criativa. Se isso constitui uma filosofia, eis então a minha.” (De Vinicius por Vinicius, organizado por Maria Lucia Rangel, Companhia das Letras).

Para encerrar esta crônica, vou em busca novamente de Clarice, em citação da mesma obra antes referida, ela que fora grande amiga do poeta e diplomata, casada com diplomata: “Fico perplexa como uma criança ao notar que mesmo no amor tem-se que ter bom senso e senso de medida. Ah, a vida dos sentimentos é extremamente burguesa.”

A boa notícia parece ser que a vida dos sentimentos, amados Vinicius e Clarice, está deixando de ser burguesa, para se tornar re-vo-lu-cio-ná-ria!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo