Opinião

Uma reflexão de Marielle sobre os papéis da política e da polícia

Os partidos e a vida política muito teriam a ganhar com o pensamento proposto pela vereadora brutalmente assassinada

Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Há mais de um ano da morte da vereadora Marielle Franco e do motorista dela, Anderson Pedro Gomes, ainda não se conhecem os nomes dos mandantes do crime.

A propósito e como nos dois artigos anteriores, gostaria de citar mais uma vez o livro “A Guerra”, de Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias (Editora Todavia).

Ali, lemos: “Dois anos antes de se tornar vereadora, no ano de 2014, Marielle Franco defendeu sua dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense. O título do trabalho era UPPs – A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Rio de Janeiro. Na conclusão Marielle sugere, com aguda perspicácia e delicadeza, um caminho para a mudança de rumo”.

Citam Marielle: “O mais correto, se estivesse em jogo uma alteração qualitativa na política de Estado e de Segurança Pública, seria nominar as UPPs de Unidades de Políticas Públicas, por se tratarem de uma necessária mudança cultural em territórios nos quais a presença do Estado não ocorre na completude. (…) O que ocorre é uma propaganda geral pela paz, na qual a polícia, e não a política, ocupa lugar central. (…) A abordagem das incursões policiais nas favelas é substituída pela ocupação do território. Mas tal ocupação não é do conjunto do Estado, com direitos, serviços, investimentos, e muito menos com instrumentos de participação. A ocupação é policial, com a caracterização militarista que predomina na polícia do Brasil”.

Corretíssimo o diagnóstico da vereadora.

Como é sabido, as UPPs resultaram do experimento das forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti (MINUSTAH), então lideradas pelo Brasil.

A experiência ocorreu principalmente em um grande bairro pobre da capital Porto Príncipe, Cité Soleil, infestado pelo tráfico de drogas. Ao revisarmos as comunicações vindas da Embaixada do Brasil naquela capital, verificamos o mesmo diagnóstico feito por Marielle: à ocupação do território dever-se-ia suceder a entrada de políticas públicas, de modo a consolidar a presença do Estado, trazendo efetivas modificações à realidade socioeconômica da população.

Entretanto, lá como cá, isso não aconteceria na proporção desejada, em grande parte pelo despreparo dos agentes públicos no manejo das referidas políticas públicas.

No caso do Haiti, diplomatas e militares sequer contavam com uma agência de cooperação internacional capaz de integrar a cooperação humanitária e a técnica. Em ambos os casos, o fracasso custou, custa e ainda custará muito caro a ambas as sociedades.

Vale notar, também, que Marielle alude à necessidade de se estabelecerem mecanismos de participação política para a população: os partidos e a vida política muito teriam a ganhar com aquela reflexão.

Com efeito, em recente palestra na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o Professor Boaventura de Sousa Santos enfatizou a necessidade de aliarmos a democracia representativa à participativa, mediante formas inovadoras de se fazer política, que vão da simples troca de opiniões face à face às formas inovadoras de expressão artística e de comunicação, como o rap, por exemplo.

Da magnífica palestra, ficam diversas impressões. Talvez a principal seja a de que a realidade atual forma um grande mosaico, resultado de projeto político de “des-significação”: um golpe que não pode ser identificado como golpe; um juízo parcial que busca parecer suprapartes; uma soberania não mais soberana.

O desafio, portanto, seria ressignificar a realidade, disputar a significação do passado e projetar no futuro um modelo de democracia realmente participativa e inclusiva.

Mas no momento em que viajamos velozmente em direção ao passado, em que vivemos o século XVIII pré-iluminista – pois como bem notou a ideologia dos reacionários remonta a aquele período – como viver a utopia?

Boaventura nos aconselha a começar pelos núcleos mais próximos – de forma concêntrica – a família, a escola, a comunidade (incluídas as igrejas).

Nesse verdadeiro processo de conversão – literal, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, tem a nos dizer.

Na obra “O mal-estar na cultura”, Freud afirma: “Tal como o planeta que ainda gira em torno de um corpo central além de rodar sobre seu próprio eixo, assim o indivíduo também participa do desenvolvimento da humanidade enquanto segue o seu próprio rumo na vida. Mas, aos nossos olhos míopes, o jogo de forças no céu parece paralisado numa mesma e eterna ordem; já nos processos orgânicos, vemos como as forças lutam entre si e como os resultados do conflito se modificam constantemente. É desse mesmo modo que as duas aspirações, a de felicidade individual e a de integração humana, têm de lutar entre si em cada indivíduo; é assim que os dois processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de se hostilizar mutuamente e disputar o terreno um do outro”.

Talvez, o esforço que temos de empreender atualmente, de ressignificar o quadro político para podermos entender sua complexidade e nela agirmos, possa levar-nos a uma síntese virtuosa entre público e privado, estado e sociedade civil, na qual as carências de cada um desses binômios possam ser adequadamente compensadas pela organização no respectivo campo complementar.

De fato, no referido livro, Freud ensina: “Acrescentamos que a cultura é um processo a serviço de eros, que deseja reunir indivíduos humanos isolados, depois famílias, então tribos, povos e nações em uma grande unidade, a humanidade”.

Como a instar-nos às ressignificações, às quais o fazer político atual nos impele, conclui o brilhante vienense: “E bem podemos suspirar por saber que é dado a alguns homens extrair do torvelinho de seus próprios sentimentos, sem muito esforço, as mais profundas compreensões, até as quais temos de abrir caminho em meio à incerteza torturante e mediante um tatear infatigável”.

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