Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Uma pandemia de palavras e expressões

Um cronista, uma caderneta e o coronavírus

O novo normal. Foto: iStock O novo normal. Foto: iStock
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Acordou apenas um pouco tonto, mas bastou esfregar as mãos no rosto para se sentir melhor. Tomou o café da manhã e foi direto pra rede na varanda do seu apartamento ler as últimas páginas do livro De cu pra lua, as memórias de Nelsinho Motta. A mulher achou o marido um pouco pálido, mas ele se sentia bem. Foi com ele na farmácia fazer o teste rápido. Deu positivo. Surgiu assim a palavra assintomático.

 

Se recolheu, olhou pela janela e não viu ninguém na sua rua. Apenas um entregador do iFood esperava na calçada, teclando no seu smartphone. Um silêncio incomum naquele bairro popular e sempre apinhado de gente. Nem ônibus passava. Lockdown, pensou.

Ligou a televisão na GloboNews que informava sobre o novo vírus a cada minuto, quase vinte e quatro horas por dia. Um pouco assustado, ficou ali assistindo. Preparou a primeira dose de Anitta e tomou, sugestão da sogra. Uma mulher dizia aflita para a repórter na porta de um hospital que sua mãe de 88 anos estava sentindo falta de ar e não estava encontrando vaga em nenhum lugar. Era grupo de risco.

Duas mulheres chegaram de Uber, de branco, desceram rapidamente do automóvel preto, tiraram o álcool gel da bolsa e esfregaram nas mãos e braços. Entraram rapidamente, passaram o crachá na roleta e sumiram pelo corredor infinito. Eram da linha de frente.

O gramado do campo de futebol foi deixando de ser verde, ganhando um tablado de madeira e em seguida, placas brancas que viravam paredes. Veio o teto, a iluminação, os caminhões com os equipamentos pararam em frente ao hospital de campanha.

O homem chegou em casa e, antes de colocar os pés no capacho, deixou os sapatos no hall. Foi direto pro banheiro, onde tirou a máscara, jogou num tupperware, arrancou tudo do corpo, das meias cinzas ao cordão de ouro. Entrou debaixo do chuveiro e esfregou fortemente o corpo com água e sabão. Saiu, enxugou, tomou outro banho de álcool 70. Para abrir a porta, pegou lenços de papel e passou com lysoform. Obedeceu ao protocolo.

Da janela da área de serviço dava pra enxergar um pedacinho do centro da cidade, onde pessoas viviam em barracas de plástico azul, algumas do lado de dentro, outras do lado de fora. Eram muitas as pessoas vulneráveis.

A mulher, vinte anos mais nova que o marido, chegou dizendo que haviam fechado novamente tudo em Paris. Funcionando mesmo, só as farmácias e supermercados. Para sair na rua, era preciso um documento de autorização. Ouviu isso no jornal da CBN. Paris não era mais uma festa, mas sim uma cidade fantasma. A segunda onda havia chegado.

As frutas e os legumes que ela trouxe do sacolão, ele jogou tudo dentro do tanque, abriu a torneira e colou duas colheres de água sanitária. Esperou vinte minutos e começou a lavar, peça por peça. Bananas, laranjas, limões, mangas, morgotes, pepinos, tomates, cenouras, rabanetes. Ficou feliz em ver tudo higienizado.

Numa manhã de domingo, ele pegou um velho caderninho de anotações e escreveu: Coronavírus, Covid-19, Coronavac, Universidade de Oxford, Astrazenica, China, curva ascendente, média móvel, sintomas, número de mortos, número de casos, pessoas infectadas, respirador, cloroquina, live, home office, fase 1, Anvisa, Pfizer, colapso do sistema de saúde, alta complexidade, distanciamento social, flexibilização, aglomeração.

Colocou a caderneta na gaveta do criado e, antes de deitar, pensou com os seus botões: um dia ainda escrevo uma crônica sobre esse tal de novo normal.

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