Opinião

Uma lição de democracia nas águas revoltas da Itália

A independência do Judiciário permite na Itália que um procurador de província passe por cima das ordens do Executivo

(Foto: Nick Jaussi/Sewatch)
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Um navio chamado Sea Watch, de propriedade de uma ONG alemã, navega pelo Mediterrâneo para salvar do naufrágio as precárias barcaças que com grave risco transportam migrantes em fuga, ou para retirar os náufragos das águas revoltas. No final da semana passada, hospedou a bordo 65 fugitivos, entre eles dois recém-nascidos e várias crianças, e rumou para o porto de Lampedusa, ilha ao largo da Sicília. O ministro do Interior da Itália, o ultrapopulista feroz Matteo Salvini, proibiu o desembarque e declarou fora da lei o Sea Watch. De saída, foram desembarcadas somente as crianças e seus pais, no total 17 pessoas.

O Conselho dos Direitos Humanos da ONU endereçou imediatamente uma carta ao governo italiano para protestar contra a tentativa “de criminalizar todos os refugiados que se encontram em situações vulneráveis” ao acusá-los de ligações com tráfico e terrorismo “que não se baseiam nos fatos”. “O governo italiano – diz ainda o documento – recusa-se a praticar operações destinadas a proteger a vida e a dignidade humana”, a justificar “o papel indispensável das organizações humanitárias”.

Dura lição de civilidade. Mas o procurador de Agrigento, que não atende, felizmente, pelo nome de Deltan Dallagnol, e sim de Luigi Patronaggio, fez mais: determinou o sequestro do Sea Watch e o imediato desembarque dos 47 fugitivos ainda a bordo. Evento igual dera-se no caso do navio Mare Jonio, graças ao mesmo procurador de Agrigento. As eleições para o Parlamento Europeu, marcadas para domingo 26, servem à propaganda do ministro e chefão da Lega, sob investigação do procurador de Catânia desde o momento de outro desembarque do Sea Watch no porto da cidade siciliana. Deflagrado o processo, o destino de Salvini passa às mãos da Justiça. A qual funciona na Itália como há de ser em uma democracia autêntica, a despeito da situação política adversa.

A independência dos três Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, garantida pela Constituição de 1948, fruto do trabalho de um ano e meio de uma Constituinte exclusiva, é essencial ao regime democrático. O Executivo ofende os Direitos Humanos com o apoio de uma maioria no Legislativo, mas o Judiciário age por conta própria e um simples procurador põe em xeque o ministro do Interior e passa por cima das suas ordens.

As bravatas de Salvini se parecem bastante com aquelas de Jair Bolsonaro e do bolsonarismo acuado cada vez mais nitidamente pelo Congresso, enquanto trafega em rota de colisão contra o STF e seus empolados ministros, astros da televisão como não ocorre em países democráticos e civilizados. Nada disso rima com democracia.

O desgoverno se explicita no conflito entre os ditos Poderes da República, mas é impossível tomar partido: quem se digladia são os golpistas de 2016, alcançado ao cabo o supremo objetivo de eliminar Lula do confronto eleitoral, entreolham-se agora entre atônitos e perplexos. No comando exibem sua parvoíce, quando não se entregam à demência. Maus lençóis tornam-se o sudário do gigante imerso em sono cada vez mais profundo, aplastado pela cegueira dos governantes diante do futuro, pela ausência de rumo e de liderança, pela inércia popular. Até a casa-grande vive uma quadra de insólita incerteza.

Bolsonaro patina e se refugia em uma paródia reminiscente de Jânio Quadros na versão final das “forças ocultas”, a empurrá-lo para a renúncia como inimigo imbatível. Parece, às vezes, que o capitão poderia repetir o gesto de JQ ao cometer um erro fatal. Jânio queria que o povo o carregasse de volta ao Planalto, naquele dia, no entanto, o Santos de Pelé jogava em Montevidéu e os nativos reuniam-se em alvoroço em torno dos rádios que transmitiam a partida.

A renúncia serviu apenas para encurtar o caminho do golpe de 1964. Cabe observar que o presidente da vassoura prometida em vão governava por meio dos célebres “bilhetinhos” e Bolsonaro, intérprete do progresso tecnológico, pelo Twitter. Certo é que JQ lidava com o vernáculo com competência, afetada a bem da verdade, enquanto o capitão manquitola miseravelmente no discurso. Falta imaginar o momento seguinte à sua eventual imitação de Jânio. Temo mais um desastre, adequado aos tempos novos.

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