Justiça

Uma justiça sem vendas mostra face cruel em velório de irmão de Lula

(…) primeiro levaram os comunistas mas não me importei com isso eu não era comunista; em seguida levaram os sociais-democratas mas não me importei com isso eu também não era social-democrata; depois levaram os judeus mas como eu não era judeu não me importei com […]

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(…) primeiro levaram os comunistas

mas não me importei com isso

eu não era comunista;

em seguida levaram os sociais-democratas

mas não me importei com isso

eu também não era social-democrata;

depois levaram os judeus

mas como eu não era judeu

não me importei com isso;

depois levaram os sindicalistas

mas não me importei com isso

porque eu não era sindicalista;

depois levaram os católicos

Leia também: A desrespeitosa decisão de Toffoli que ofende Lula e memória de Vavá

mas como não era católico

também não me importei;

agora estão me levando

mas já é tarde

não há ninguém para

se importar com isso.

O poema em epígrafe, “E não sobrou ninguém”, cuja autoria pertence ao pastor luterano Martin Niemöller (1892-1984) é o mais apropriado para hoje e penso que vai nos atormentar por um bom tempo ainda.

Depois do suicídio eleitoral do último pleito, só nos resta buscar forças naqueles que resistiram a uma história que nunca deveria se repetir.

Niemöller foi um cidadão alemão, que lutou contra as violações de direitos humanos cometidas pelos nazistas, na Alemanha, durante o período da II Guerra Mundial (1939-1945). Ele pertencia à Igreja Luterana e exercia o ofício de pastor religioso protestante.

Acredita-se que o poema era proferido em seus discursos e sermões, inspirado na leitura de escritos do poeta russo Vladimir Maiakóvski (1893-1930). Em 1934, Niemöller acreditava ainda que poderia discutir com os novos donos do poder. Numa recepção na Chancelaria em Berlim, ele contestou Hitler, que queria eximir a Igreja de toda responsabilidade pelas questões “terrenas” do povo alemão:

“Ele me estendeu a mão e eu aproveitei a oportunidade. Segurei a sua mão fortemente e disse: ‘Sr. Chanceler, o senhor disse que devemos deixar em suas mãos o povo alemão, mas a responsabilidade pelo nosso povo foi posta na nossa consciência por alguém inteiramente diferente’. Então, ele puxou a sua mão, dirigindo-se ao próximo e não disse mais nenhuma palavra.”[1]

Não me estenderei sobre a história do pastor luterano cuja liberdade de expressão fora cerceada por um regime ditatorial porque penso que seu texto usado para a abertura desta conversa já evidencia os tempos sombrios e de concentração de poder em que vivemos.

Leia também: Comportamento de Judiciário em enterro de Vavá escancara a exceção

***

Muito embora não possa me dizer operador da justiça ou especialista na área, sou um ativista em nome dos direitos humanos, sou especialista em análise do discurso e, quando professor, atuei, durante cerca de quatro anos, como professor de Linguagem Jurídica e, à época, nunca me detive especificamente no uso da metalinguagem jurídica. Interessava-me mais levar meus alunos a compreender os efeitos de sentido criados pelo discurso e como poderiam se servir da tanto da compreensão quanto do uso da produção discursiva.

Não é novidade para ninguém que, desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff consolidado no dia 31 de agosto de 2016, a Constituição Federal não tem sido respeitada e balizado as decisões do judiciário. Mas quem se importa?

Eu confesso que estava resistindo à necessidade de me posicionar explicitamente contra uma série de fatos, intencionalmente produzidos, que têm, a um só tempo: (1) reduzido as pessoas às suas paixões, aos seus desesperos, às suas aparentes necessidades imediatas e, consequentemente, (2) arrancado de modo brutal e aterrorizante um país democrático, com uma Constituição Federal igualmente democrática e, até certo ponto, humanizada, do seu lugar de país civilizado.

Falo agora da impossibilidade do ex-presidente Lula se despedir de seu irmão que retornou à massa primordial.

De acordo com a Lei de Execução Penal, o ex-presidenteLuiz Inácio Lula da Silva (PT)poderia ter deixado a superintendência da Polícia Federal para acompanhar o velório de seu irmão mais velho, Genival Inácio da Silva, conhecido como “Vavá”. Ele morreu em decorrência de um câncer no sistema sanguíneo. O enterro foi nesta quarta-feira – 30 de janeiro, em São Bernardo do Campo (SP), no cemitério Pauliceia.

Vejamos o que diz a Lei de Execução Penal:

Penso que basta saber ler e interpretar textos simples para perceber que o somatório de algo muito errado, mais o medo da imagem do ex-presidente exposta em um evento familiar, mais uma justiça que nunca foi tão cega e parcial – mas nunca foi também tão míope e tendenciosa, mais uma suposta verdade, hoje, encoberta pela cólera de um grupo, que se considera racional, inteligente e maioria, impediu uma despedida do ex-presidente Lula do seu irmão Vavá. Ele só queria se despedir, mas um governo que cria a fantasia de um discurso neutro justamente intensifica as questões ideológicas da extrema-direita.

Há dois sentidos que se quer produzir com esta atitude: o primeiro diz respeito ao sentido posto por oposição o bem versus o mal, com isso, temos o poder inclusive acima da lei, da Constituição Federal e da dignidade humana; o segundo diz respeito ao que chamo agora de tortura psicológica, aniquilamento da humanidade pela dor produzida e reforço da pena por meio de ausência de respeito à morte, à dor, à despedida, às relações familiares. Com isso, diz-se “você não é mais humano, você sequer merece sentir o que um humano sente. Este é o tratamento que lhe dedicaremos.” Ninguém aqui há de duvidar que o ex-presidente, hoje, só não está em uma câmara de gás porque isso causaria danos irreversíveis à imagem de um país que mente para si mesmo que ainda se quer democrático. Esta farsa precisa ser conduzida até que um projeto de poder maior e em nome do neoliberalismo se consolide. O projeto da extrema-direita.

Ainda sobre o poder acima da ordem e o ódio como elixir para a cura de toda dor produzida pelo suposto anti-herói da narrativa e potencializada pelos interesses do agora rei, o que vemos tem sido mais assustador que a própria narrativa e todas as ilusões provocadas por seus roteiristas.

Como alguém que se ocupa da linguagem, não posso deixar de trazer para esta conversa o comentário de um crítico de facebook. Logo após a noticia da morte do irmão do ex-presidente e o impedimento preliminar referente ao pedido de comparecimento ao funeral de seu irmão, um anônimo comenta:

“Ele tinha que ir no velório pra alguém empurrar ele na corva e enterra juntos kkk” (sic.)

Eu fiquei pensando que tudo bem que as pessoas elejam seus vilões e algozes. Tudo bem que tomem partido. Tudo bem que sintam raiva. Tudo bem que sejam massa de manobra e pensem por osmose, mas, quando alguém se desumaniza a este ponto, algo está muito errado com a civilização contemporânea.

E quem se importa?

Ainda há muita gente que não perdeu a sanidade, a capacidade de se pensar parte de uma sociedade democrática e civilizada que se importa.

Eu ainda me importo e espero no criador que você ainda se importe também.

Urge que nos importemos porque esta moeda só tem dois lados e, em um dos lados, não há espaço para tanta gente.

Pensemos.

Sidnei Barreto Nogueira é Dr. em Semiótica e Linguística Geral pela FFLCH-USP. Babalorixá da CCRIAS – SP. Ativista em Direitos Humanos, Afroteólogo, escritor e coordenador dos projetos Conversa de Terreiro e do Instituto Ilê Ará.

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil


[1] MICHAEL Robert. Theological Myth, German Antisemitism and the Holocaust: The Case of Martin Niemoeller.  Holocaust and Genocide Studies 2 (1987), 1:105-22.

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