

Opinião
Uma falsa solução
A criação de um exame de ordem pode desviar o foco das medidas necessárias para a prática médica


Todos que participam do debate sobre a formação médica compartilham um objetivo legítimo: garantir que a população tenha acesso a médicos bem preparados, capazes de oferecer cuidados seguros e de qualidade. Mas a proposta de criação de um exame de ordem para medicina, sob responsabilidade do Conselho Federal de Medicina (CFM), não vai às raízes do problema e pode, ao contrário, gerar injustiças, ampliar desigualdades e desviar o foco das medidas necessárias.
A “moratória”, instituída em 2018, para congelar novos cursos por cinco anos, revelou-se uma farsa. Entre 2015 e 2022, foram criadas 134 novas faculdades e mais de 30 mil vagas, em sua maioria em escolas privadas e em lugares onde não havia necessidade. O número total de vagas praticamente dobrou, de 29 mil para mais de 60 mil, em um crescimento metastático. O resultado é um sistema de formação concentrado no setor privado, pouco regulado e com qualidade desigual.
Diante disso, é justo perguntar: punir estudantes e famílias com um exame de proficiência é a melhor alternativa? A resposta é não.
Primeiro, porque a proposta não ataca a causa da má formação: cursos ruins. Em vez de responsabilizar as instituições que lucram com mensalidades altíssimas, transfere-se a penalidade para os jovens e suas famílias, que já arcam com custos pesados e seis anos de dedicação. Isso criaria uma massa de “bacharéis em medicina” sem função social, após investimentos públicos e privados elevadíssimos. É ineficiente e socialmente injusto.
Segundo, porque um exame de ordem inevitavelmente contaminaria a graduação. Faculdades e estudantes passariam a orientar currículos e práticas apenas para a prova, em detrimento de uma formação ampla, crítica e integrada. A experiência dos cursinhos preparatórios para residência já mostra esse efeito perverso: alunos que deixam de lado atividades do internato para decorar protocolos.
Terceiro, porque aprovação em prova teórica não garante competência clínica. Medicina é ciência, mas também é arte, prática e relação. Exige habilidades e competências para diagnosticar, decidir sob pressão e estabelecer relação com pacientes – habilidades não mensuráveis em testes de múltipla escolha. Um exame no sexto ano não teria sequer função corretiva.
Quarto, porque ampliaria a elitização da profissão. O acesso à medicina ainda é privilégio das elites econômicas. A proliferação de cursinhos preparatórios para o “exame do CFM” criaria mais uma barreira financeira para estudantes de baixa renda.
E não custa lembrar: formar e avaliar é papel das universidades e do MEC. Aos conselhos cabe fiscalizar o exercício ético-profissional. A analogia com o exame da OAB é falaciosa: ele nem impediu a abertura indiscriminada de cursos nem melhorou a qualidade da formação dos advogados.
O que fazer? O debate abre caminho para medidas estruturantes e imediatas.
A primeira é fortalecer o papel regulador do MEC. Foi criado o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes de Medicina (Enamed), a ser aplicado em outubro, obrigatório para todos os concluintes. Seus resultados, atrelados ao Enare – maior exame de residência do País – permitirão a avaliação institucional imediata. A partir de 2026, a prova do Enare será aplicada também no quarto ano, compondo 20% da nota final para residência.
O desempenho esperado é de que a média institucional fique entre 3 e 5. Escolas com notas 1 e 2 sofrerão sanções: suspensão de Fies e ProUni, redução ou suspensão de ingresso já em 2026, supervisão direta e, em caso de reincidência, descredenciamento do curso. Ao contrário do exame do CFM, que só teria efeito após seis anos, o Enamed responsabiliza quem deve ser responsabilizado: as escolas médicas.
É legítimo também discutir formas de dar mais transparência ao desempenho individual, como registrar no histórico escolar a nota no Enamed e a média da turma. Mas sempre como complemento à avaliação institucional, nunca como barreira ao exercício profissional.
A formação médica é complexa demais para respostas simplistas ou sensacionalistas. O que está em jogo é o direito da sociedade a médicos competentes e comprometidos. O caminho é fortalecer a regulação estatal, avaliando e fiscalizando as escolas, garantindo a ampliação da residência e investimentos na qualidade pedagógica, nos docentes, nos cenários de prática e na infraestrutura universitária.
Somente assim o diploma de medicina corresponderá, de fato, à expectativa da sociedade brasileira. •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma falsa solução’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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