Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Uma carta para Titi Gagliasso

‘Titi querida, desejo que você tenha bons amigos. Desejo que estude em uma escola que acolha você e o Bless com empatia e generosidade’

Créditos: Reprodução / Redes sociais
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Belo Horizonte, 9 de abril de 2020

Querida Titi!

Que alegria escrever para você! Sei que o mundo das letras, das palavras, está cada dia mais vivo dentro de ti. Ainda assim, é bem provável que você não compreenda tudo que registrarei aqui. Não faz mal. Torço para que um dia você possa ler a minha carta, escrita com tanto carinho. Não se preocupe. Não há pressa.

Acompanho o seu pai e a sua mãe nas redes sociais. Sou muito grata pelas contribuições que eles têm dado para o combate ao racismo no Brasil. É muito bom perceber que eles entenderam que a luta contra esse mal não deve ser somente de nós negras e negros. Melhor ainda é pensar na infinidade de pessoas que eles têm influenciado por meio de falas e ações.

Fico sempre na torcida para que eles postem uma foto, um vídeo seu. Que menina bonita e esperta você é! Além disso, sempre que a vejo, meu coração se enche de esperança de que você e o Bless, seu irmão, crescerão em um mundo bem diferente do que eu cresci.

Sempre fui muito estudiosa, mas isso não foi suficiente para me eximir de uma trajetória escolar permeada por experiências muito duras. Em razão da cor da minha pele, quando eu tinha sua idade, por diversas vezes meus colegas não me chamaram para brincar. O mesmo ocorria durante a partilha do lanche, na hora de fazer os trabalhos. Sempre havia alguém para dizer não ao meu desejo de trocar sucos, pães e biscoitos, como também para negar a possibilidade de sentar ao meu lado, de ser o meu par nas festas, de dividir as tarefas. Em muitas ocasiões, a escola foi um espaço no qual me senti só. Infelizmente, esse sentimento é muito comum entre as crianças negras do Brasil.

Por eu ter nascido com a pele escura, na maior parte do tempo, fui colocada nas últimas carteiras da sala de aula. Ao abrir os livros, encontrava pessoas que se pareciam comigo somente na condição de escravizados, o que também acontecia na televisão. Passei a infância inteira sem ver um único programa protagonizado por apresentadoras e assistentes de palco da minha cor. Acho até que as que entravam diariamente em nossas casas nos anos de 1980 e 1990 devem um pedido de desculpas pelos danos causados na autoestima das meninas negras da minha geração.

A soma de tudo isso faz com que eu me engaje na luta contra o racismo, sobretudo, na educação. Todos os anos, levo para sala de aula um pouco da África, continente em que você nasceu. Quando peço aos meus alunos que relatem o que sabem sobre a região considerada o berço da humanidade, eles sempre têm na ponta da língua “pobreza”, “fome”, “miséria” e “doenças”. Essa visão estreita não é fruto do acaso.

Mesmo o Brasil tendo uma ligação muito forte com a Cultura e com a História africana, em nossas escolas e nas universidades estudamos muito pouco sobre essas questões. Isso se dá em função do racismo que permeia os currículos escolares. Para tentar mudar essa situação, que limita nossa capacidade de conhecer a pluralidade da vida e do mundo, ensino a eles que, de fato, existem muitas dificuldades e injustiças na África, resultantes da devastação provocada pelo colonialismo perpetrado pelos europeus, mas mostro também que os africanos foram responsáveis pelo surgimento da Medicina, da Astronomia, da Arquitetura, da Matemática e de tantas outras invenções fundamentais para a nossa existência.

Ensino tudo isso para que eles sintam orgulho da pertença racial, da nossa ancestralidade e saibam da importância dos negros na construção do nosso país. Há alguns anos, meus alunos puderam trocar cartas com estudantes de Moçambique, país que fica ao norte do Malawi, sua terra natal. Foi uma experiência especial e emocionante para todos nós.

Logo, logo, você vai descobrir que muita gente importante nasceu na África. Lá nasceram Nelson e Winnie Mandela, Graça Machel, Wole Sowinka, Chimamanda Ngozi Adichie e Kabengele Munanga, pesquisador congolês que vive no Brasil há mais de 40 anos. Se você o conhecesse, certamente o chamaria de vovô. Ele nos ensina que a luta antirracista beneficia também as crianças brancas, pois elas têm “as estruturas psíquicas afetadas pelo racismo”. Na África nasceu você, que mesmo sendo tão pequena, ilumina a vida de tanta gente.

Outro dia vi uma sequência de fotos em que, diante do espelho, você comemorava o crescimento do seu cabelo. Fiquei emocionada. Vi a menina Luana em você. Vi tantas crianças negras. Aos seis anos de idade, não gostava do meu cabelo, pois ele era chamado de “Bombril”, “palha de aço”, “Assolam”, “arame farpado”, e tantos outros apelidos que me feriam profundamente. Cresci odiando o meu cabelo. Esse ódio ficou para trás. Meu cabelo é igual ao seu e, assim como você, agora também o amo. Seu cabelo é lindo, Titi! Você é linda! Jamais se esqueça disso.

Titi querida, desejo que você tenha bons amigos. Desejo que estude em uma escola que acolha você e o Bless com empatia e generosidade, que respeite, reconheça e valorize a diversidade étnico-racial existente em nosso país. Uma escola que não silencie diante dos casos de racismo. Como eu disse nas primeiras linhas dessa carta, espero que você cresça em um Brasil diferente do que eu conheci até aqui. Todos os dias luto para que isso seja possível.

Encerro essa mensagem com as mesmas palavras que Nelson Mandela costumava usar no final das cartas escritas para sua companheira Winnie: “um milhão de beijos e toneladas e toneladas de amor”.

Luana Tolentino

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