Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Uma carta para Francia Márquez

A partir de agora, você é a materialização dos sonhos do que lutaram, mas não viveram o suficiente para vê-la na vice-presidência da República colombiana

Francia Marquez, vice-presidente da Colômbia, em ato solidário a Marielle Franco. Foto: Reprodução
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Belo Horizonte, 24 de junho de 2022

Querida Francia!

Espero que esteja bem e com o coração em paz.

Escrevo essa carta ainda tomada pela alegria, pela emoção da sua vitória no último domingo. 

Tomo a liberdade de redigi-la sem a formalidade que um texto endereçado a uma chefe de Estado exige. Escrevo como se as palavras que registro aqui fossem dirigidas a uma amiga, a uma irmã.

É bem provável que você saiba, mas preciso dizer quanta coisa a sua chegada à vice-presidência da Colômbia representa. Diante das notícias, da sua foto estampada nas redes sociais e nos principais jornais do Brasil, não consegui deixar de pensar nas meninas e jovens negras que terão você como espelho, como farol, como exemplo.

Lembrei de uma reflexão da atriz Viola Davis, que recentemente falou da importância de termos pessoas inspiradoras a nossa volta:  “Você precisa ver uma manifestação física do seu sonho” – ela disse. A partir de agora, você é a materialização dos sonhos dos nossos antepassados, da nossa gente, dos que ficaram para trás, dos que lutaram, mas não viveram o suficiente para vê-la na vice-presidência da República colombiana.

Desejo que, em outubro, o povo brasileiro mire no exemplo dos colombianos e diga não à política neoliberal, à violência da extrema-direita, ao privatismo, à destruição das nossas florestas

Neste momento de festa, de celebração, é sempre importante lembrar o quanto os espaços de poder, de decisão, e o direito de ser e existir têm sido negados a nós, mulheres negras. Sei que sua caminhada não foi fácil. Temos a oportunidade de conhecer a Francia política, que também é mãe, feminista, advogada, ativista ambiental e, assim como eu, conheceu de perto o trabalho doméstico, profissão que mais se aproxima do nosso passado colonial, escravocrata.

Como você mesma disse, foram necessários 214 anos para que a Colômbia elegesse uma vice-presidenta negra. É tempo demais. Penso: não fosse o racismo, quantas Francias teriam o nome grafado na história da Colômbia?

No próximo 15 de novembro, completam-se 133 anos desde que o Brasil se tornou uma República. Ainda não tivemos a chance de ver uma mulher negra em um posto tão alto quanto o que você ocupa, o que me obriga a perguntar: quantas foram impedidas de avançar? Quantas tiveram os sonhos interrompidos em razão do racismo?

E não é só: as que conseguem chegar às Câmaras, às Assembleias e ao Senado, em geral, têm a vida constantemente ameaçada pela violência racista, sendo Marielle Franco – assassinada de maneira brutal há quatro anos – exemplo da tentativa incessante de silenciar, de pôr fim à nossa existência.

Para além do racismo, vivemos sob o signo do terror, sob a política da barbárie, da morte, da destruição, do desrespeito à dignidade humana. Somos intimidados, humilhados diariamente pelos saudosos da ditadura e pelos entusiastas do fascismo. O Brasil tornou-se o país do desemprego, da fome, da miséria.

Atualmente, mais de 30 milhões de pessoas não têm o que comer. É também por isso que a sua vitória e a do presidente Gustavo Petro representam tanto para mim, para a maioria de nós, pois reaviva nossos desejos de liberdade, de igualdade e de justiça.

Desejo que, em outubro, o povo brasileiro mire no exemplo dos colombianos e diga não à política neoliberal, à violência da extrema-direita, ao privatismo, à destruição das nossas florestas. 

Seus sonhos são os mesmos que os meus. Como você disse pouco depois da divulgação do resultado das eleições: sonho com “um governo popular, do povo de mãos calejadas. Um governo com amor e alegria. Um governo pela dignidade, pela justiça social, pelos direitos da comunidade LGBTQIA+, pela nossa Mãe Terra, que elimine o patriarcado e erradique o racismo estrutural”. E de sonhar, eu entendo bem.

A você Francia, desejo tantas coisas. Desejo que não lhe falte força e coragem para enfrentar o machismo, o racismo e a desconfiança daqueles que acham que mulheres como você, como nós, estamos neste mundo apenas para servir e limpar a sujeira dos outros. Desejo que o povo colombiano caminhe ao seu lado na luta contra o imperialismo que ameaça a América Latina.

Desejo que a reforma agrária, o direito à educação e o fim da pobreza sejam o resultado final dessa travessia que se inicia. Desejo que seja feliz, que a vice-presidência, a vida pública, signifique um lugar de realização para você.

Não sei, mas algo me diz que nos encontraremos em breve. Talvez, esse encontro já tenha ocorrido em outro tempo. Talvez, seja por isso que eu me sinto tão próxima de você.

Enquanto esse (re)encontro não acontece, deixo as palavras da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo: “A sua vida, menina, não pode ser só sua. Muitos vão se libertar, vão se realizar por meio de você. Os gemidos estão sempre presentes. É preciso ter os ouvidos, os olhos e o coração abertos”

Um abraço, Francia.

Com carinho e esperança, 

Luana Tolentino

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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