Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Uma carta para Felipe Santa Cruz

‘Não haverá democracia enquanto continuarem matando nós negros como se fôssemos baratas, conforme pontuou Martin Luther King’

Felipe Santa Cruz, presidente da OAB (Divulgação)
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Belo Horizonte, 10 de junho de 2020

Prezado Felipe Santa Cruz,

Espero que esteja bem e com saúde, apesar dos dias de tormenta que vivemos.

Acompanho o seu trabalho, mas não é isso que move a escrita dessa carta.

Escrevo ainda consternada pela morte do menino Miguel, na terça-feira, 02 de junho, em um prédio de luxo da capital pernambucana. Confesso que no primeiro momento, optei pelo silêncio. Não por omissão. Longe disso. Emudeci, pois não encontrei palavras que dessem conta de um ato tão brutal, de total desprezo pela vida humana.

Passei o dia imaginando o que a Mirtes, mãe do Miguel, sentiu ao se deparar com o corpo do filho despedaçado, após cair do 9º andar. Na verdade, não dá para imaginar. Minha mãe que já perdeu duas filhas, sempre diz que não há dor maior no mundo.

Sou filha, neta, sobrinha e prima de empregadas domésticas, tanto por parte de pai, quanto de mãe. Sou uma ex-empregada doméstica, profissão que mais do que qualquer outra carrega o nosso passado escravocrata. Posso contar com riqueza de detalhes o tratamento humilhante e vexatório que muitas vezes experimentamos ao sermos contratadas para cuidar de crianças, cozinhar e lavar privadas.

Ao contrário do Miguel, não acompanhei minha mãe no trabalho quando criança, somente na adolescência. Desse modo, conseguíamos faxinar duas casas em um único dia e, com isso, ganhar um pouco mais de dinheiro para levar comida até a nossa mesa. Enquanto eu limpava janelas sob o risco de despencar do terceiro ou quarto andar, minha mãe esfregava roupas íntimas sujas de sangue menstrual da patroa, num claro exemplo do que a historiadora Luciana Brito chamou de “delírios escravistas coloniais da sociedade brasileira”.

Mirtes e Miguel foram vítimas desse delírio. Mirtes deveria estar em casa, cumprindo a quarentena, amparada pelas leis trabalhistas, uma vez que o trabalho doméstico não é um serviço essencial. Mirtes deveria estar em casa cuidando, brincando com o Miguel. Mirtes deveria estar em casa ofertando a ele o mesmo carinho que certamente ofertava aos filhos de Sari Corte Real, sua patroa e “primeira-dama” da cidade de Tamandaré.
Mas, não. Mirtes estava trabalhando. Havia levado a cadela de Sari para defecar. Questiono: essa é uma atribuição que deve ser dada às empregadas domésticas? Não. Trata-se somente de uma ação movida pelo “saudosismo do Brasil escravocrata colonial”. Aqui, recorro mais uma vez às palavras de Luciana Brito, professora da UFRB.

Tomada pela sanha escravocrata, ao ver Miguel clamando pela mãe, Sari colocou o menino de apenas cinco anos no elevador, empurrando-o para a morte. Sari queria se ver livre do Miguel. A cena me fez lembrar de famílias que para se livrar de cães e gatos, os colocam no porta-malas e, em seguida, os soltam na beira das estradas, certos de que os bichos sucumbirão à fome ou atropelamentos. Miguel sucumbiu à queda de 35 metros de altura.

Em meio ao desespero, Mirtes afirmou: “Se fosse eu, já estaria presa. Meu rosto estaria estampado, como já vi vários na televisão”. Ela tem razão. Presa em flagrante, Sari pagou fiança de vinte mil reais e responderá ao crime em liberdade. Mirtes é negra. Sari é branca. Mirtes é pobre. Sari é rica. Como jurista, o senhor bem sabe: crimes que vitimam pessoas de pele escura raramente são punidos.

Pergunto: O senhor tem conhecimento de alguém que esteja cumprindo pena pelo crime de racismo? Onde está o segurança do supermercado Extra, que asfixiou e matou um jovem negro em fevereiro de 2019, tal qual ocorreu recentemente nos Estados Unidos? Onde estão os soldados do Exército que dispararam 80 tiros contra o carro do músico Evaldo Rosa, levando-o à morte? Onde estão os policiais que mataram e arrastaram Cláudia pelas ruas do Rio? Onde estão os policiais que recentemente mataram a menina Ághata Félix e o garoto João Pedro? Quem mandou matar Marielle? É justamente por temer a perpetuação dessa impunidade que resolvi lhe escrever.

(Foto: Reprodução/Redes Sociais)

Por favor: na condição de pai, cidadão e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, atue para que esse crime que dilacerou a família da Mirtes e chocou a todos nós não seja mais um a ficar impune. Sari Corte Real age como se o que aconteceu não dissesse respeito a ela.

Nos últimos dias, por meio das redes sociais, assim como milhares de brancos, o senhor declarou ser partidário da luta antirracista. Afirmo que essas ações são importantes, mas insuficientes. É preciso fazer uso do lugar de privilégio e de poder que vocês ocupam para colocar em prática medidas capazes de mudar esse regime de apartheid, que rouba de nós negros a condição de cidadãos de fato e de direito.

 

Por favor: atue ao lado da advogada Maria José Amaral, designada pela OAB para acompanhar o caso. Além de auxílio jurídico, provavelmente, Mirtes e a família precisarão de assistência psicológica. Se possível, realize uma audiência pública com a presença de ativistas do Movimento Negro para debater a urgência de ações de combate ao racismo e à violência motivada pela cor da pele.

Antes de responder a minha carta, de ver a possibilidade de atender ao meu pedido, peço encarecidamente que o senhor tente se colocar no lugar da Mirtes. Tente imaginar o que ela sente ao ter que lidar com o vazio, com o silêncio, com a ausência do Miguel.

Peço ainda que se lembre: enquanto a humilhação, o desprezo, a pobreza, a miséria, a violência e a falta de acesso à Justiça forem uma constante na vida de nós negros, não haverá democracia.

Não haverá democracia enquanto continuarem matando nós negros como se fôssemos baratas, conforme pontuou Martin Luther King.

Deixo um abraço com fé e esperança.

Luana Tolentino

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