Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Um vatapá de loucuras

Que tal desmistificarmos a eleição de Jair Bolsonaro em 2018?

Foto: Mauro Pimentel/AFP
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Eu estou convencido de que criou-se uma mística em torno da eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Essa mística costuma ser pronunciada por meio de vocabulários distintos. Alguns indicam um acidente. Outros, uma anomalia. Mas muitos dão ao resultado daquele pleito um caráter realmente mágico. Uma espécie de feitiçaria que ainda não foi quebrada e que pode nos atingir, sorrateiramente, outra vez mais.

Para além das torcidas veladas de muitos antipetistas opostos ao bolsonarismo, eu creio que há, realmente, uma mística que faz com que tenhamos, dia sim, dia também, tantos alertas e tantos alarmismos sobre a possibilidade de Jair Bolsonaro se reeleger repentinamente contra o infinito de adversidades que o separam da reeleição. O cara parece ter sido convertido numa espécie de bruxo da política nacional.

Como costumamos dizer na Bahia, temos um autêntico Vatapá de Loucuras.

A eleição de Jair Bolsonaro passou longe de ser um acidente ou uma anomalia. Um conjunto de fatores explícitos e gritantes apontavam para seu enorme potencial de se eleger presidente, como alertou, sem qualquer modéstia, este colunista já nos idos de 2017. Quem se surpreendeu é porque estava profundamente distraído ou operando mentalmente com categorias do passado da política para compreender aquele presente de transformações e deturpações.

Em primeiro lugar, Jair Bolsonaro, a direita e a extrema-direita, reinaram absolutos, por anos, na comunicação em plataformas digitais no Brasil. O atual presidente da República fez, praticamente, um voo solo no que chamamos, na Comunicação, de eleições intermináveis ou campanhas permanentes. Uma das evidências mais ululantes é o fato de Dilma Rousseff ter largado a comunicação digital de mão após sua reeleição em 2014 e só ter reestabelecido esses canais quando a crise política já lhe devorava os ossos. Isso já não é mais verdade. Jair Bolsonaro não está mais só em termos de inteligência e investimentos de campanha nas redes digitais. Há disputas beirando simetrias.

Em segundo lugar, a nossa elite política (notadamente os políticos profissionais, os partidos e também nove em cada dez analistas de política) depositavam uma fé enorme no poder do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral em detrimento da comunicação digital. Diziam que Jair Bolsonaro iria desidratar, naturalmente, conforme as campanhas fossem às ruas, à televisão e ao rádio. Operavam, portanto, com as lentes do passado para enxergar o presente. Lembram de como era o adversário favorito de todas as campanhas para o segundo turno?

Como também dizemos na Bahia, “entrou fumo” nessas análises. Jair Bolsonaro chegou em redutos eleitorais inimagináveis graças à comunicação digital a ponto de até o marqueteiro Nizan Guanaes dizer em março de 2018 que o cara se elegeria. Dentre os argumentos, eis este: “Nizan disse que tempo de TV “é uma conversa antiga”. “Ele tem tempo digital. Ele tem 34% no Acre. De onde veio esse cara no Acre?””. Há exageros, visto que televisão e rádio passam longe de estarem obsoletos no Brasil, mas o ponto foi certeiro.

Em terceiro lugar, essa mística conta com uma subestimação curiosa do encaixe normativo entre Jair Bolsonaro e os valores morais brasileiros. O atual presidente só mereceu a alcunha de mito por ter representado uma espécie de ruptura da espiral do silêncio moral de milhões de brasileiros ou brasileiras que, enfim, viam alguém falar aquilo que eles não aguentavam mais ter que suprimir sobre mulheres, homossexuais, criminosos, negros, índios, cotistas, beneficiários de programas sociais, empregadas domésticas e por aí vai em suas rodas de conversas. Duvida? Dá uma olhadinha na faixa de brasileiros que ainda julgam este governo como ótimo/bom e regular. Spoiler: mais de 50% do eleitorado.

Em quarto lugar, temos o que uns chamam de anomalia, mas eu prefiro chamar de uma reedição da tradição golpista da política brasileira (contra, obviamente, qualquer projeto que mire alguma distribuição de renda e combate a desigualdades). Com 100 dias de prisão e já gozando de anos de perseguição política e cobertura jornalística correlata, Lula ainda liderava a corrida presidencial em 2018, segundo o DataFolha.

Foi exatamente por isso que foi preso. Foi por essa razão que o então comandante do Exército, junto com a alta cúpula das Forças Armadas à época, resolveu publicar um ultimato golpista no Twitter ameaçando o STF caso a Corte resolvesse restituir os direitos políticos do então favorito à presidência. Foi também por isso que Willian Bonner leu o tweet sem qualquer análise ou contraponto devidamente jornalístico e democrático, no mesmo dia, da bancada do Jornal Nacional. Foi por isso que jornalistas como Leilane Neubarth, da Globo News, celebraram com termos ufanistas a posterior decisão desfavorável ao habeas corpus de Lula no STF. Não é por outra razão que chegamos ao ponto da naturalização ou celebração do juiz do caso (hoje julgado e condenado suspeito) se tornar ministro do cara que ele beneficiou eleitoralmente.

Sim. Não sou eu, são os dados. São as evidências. A prisão de Lula foi determinante para a eleição de Jair Bolsonaro. O problema é que 2022 não é 2018. Lula e seu recall eleitoral estão no páreo. A roda da História continua girando e as coisas mudam. As agendas se transformam. As prioridades se transformam. O passado não tem costumado ser um bom parâmetro para entender e analisar o presente da política nacional ao menos desde 2018. Ainda mais quanto envolto em tantas místicas e raciocínios mágicos.

Essa é a razão pela qual a campanha de Jair Bolsonaro – até aqui se mostrando uma lástima anacrônica que aposta na agenda moral de 2018 e conta com crimes eleitorais bilionários para tentar comprar votos – não conseguiu,tirar de Lula os votos que planejava tirar.
Acho que fica a lição, até para evitar micos analíticos telegrafados e, posteriormente, justificativas tergiversantes. Na política, assim como na vida e na gastronomia, prefira um vatapá sem loucuras. De preferência com aquele azeite de dendê trabalhado na sobriedade e nas melhores evidências.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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