

Opinião
Um sonho de país
‘O tempo passou, eu fui embora e quando voltei encontrei um país zoneado, muito zoneado’


Era final dos anos 1950, quando os tratores amarelos da Caterpillar começaram a chegar em comboio para iniciar a construção da BR-3, a estrada que liga Minas ao Rio, bem na esquina da minha casa.
Foi mais ou menos nessa época que comecei a sonhar com um país de verdade.
Antes de começar a terraplanagem, homens fortes arrancavam o mato mais alto, pés de mamona principalmente, para dar passagem às máquinas.
Logo, logo elas começaram a rasgar aquela terra vermelha, preparando o terreno para a brita, depois o piche e finalmente o asfalto.
Em poucos dias, foi ficando tudo muito bonito. O riacho que passava por ali foi canalizado e as árvores mais frondosas foram conservadas.
A estrada ia ganhando forma, aquele asfalto preto com listras brancas nos levava a um horizonte de perder de vista. Sabia que, lá no fim, estava a Cidade Maravilhosa.
Juscelino Kubistchek veio para a inauguração e apertou a mão de todos aqueles meninos enfileirados com a bandeirinha do Brasil nas mãos, inclusive eu.
Não era só a estrada que me animava.
Belo Horizonte ganhava seus primeiros prédios, calçadas com cimento de primeira qualidade, meio-fio bem colocado, sinais de trânsito pintados de amarelos, muitas árvores, o que dava um frescor único à Avenida Afonso Pena, a principal da cidade.
Os motoristas de táxi eram chamados de chauffer e usavam terno completo, com paletó, gravata e sapatos polidos. Os homens andavam de chapéu e as mulheres desfilavam pelo centro de vestidos tubinho comprando perfumes na Sloper enquanto os maridos esperavam tomando um cafezinho com muito açúcar no Café Pérola.
De noite, os primeiros luminosos brilhavam anunciando o futuro de uma metrópole a vir.
Crescido, fui morar em Brasília, onde desenvolvi o gosto pela arquitetura, pelo desenho, pelos projetos que fazia em papéis quadriculados que o meu pai trazia da repartição.
Projetava novas superquadras para a cidade, os setores bancários, hospitalares, as escolas-parque, os supermercados onde comprávamos o melhor suco de pêssego do mundo, o recém lançado Yuki.
Imaginava que Brasília poderia ser o retrato do Brasil no futuro. Lindos campos gramados, muitas árvores, o trânsito organizado, as ruas limpas, um lago circundando a cidade planejada, arrumada, tipo Maria kondo.
O tempo passou, eu fui embora e quando voltei encontrei um país zoneado, muito zoneado. A avenida Afonso Pena transformou-se num amontoado de lojinhas populares, os motoristas não usavam mais terno, as árvores foram cortadas pelo prefeito Amintas de Barros e a cidade estava suja, muito suja.
Brasília envelheceu, os lambris saíram de moda, os azulejos dos túneis estavam descolando e a poeira vermelha deixava tudo com um aspecto de faroeste caboclo.
Vendedores de bilhetes gritavam para os transeuntes na rodoviária: “Olha o jacaré para hoje!”
Então, eu pensei com os meus botões: Quem sabe mais tarde, se der o jacaré, a gente constrói este pais?
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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