Paulo Nogueira Batista Jr.

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Economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países

Opinião

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Um olho no peixe, outro no gato

Coração de mãe, a Arca do Lula está ficando meio lotada. Caso ele vença, logo veremos a disputa pela hegemonia na frente superampla que comporá o governo. É preciso ser realista nas expectativas

Foto: Reprodução
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A Arca de Noé do Lula é uma beleza, leitor. Trata-se de uma construção brilhante e bem brasileira. O brasileiro é, entre muitas outras coisas, um eclético e um pragmático. E o nosso Noé o ex-presidente Lula, é brasileiro até a medula. A sua Arca, com tripulantes e passageiros muito heterogêneos, só poderia ser montada num país como o Brasil. E por um político pragmático e eclético como Lula. Por motivos evidentes, que não preciso recapitular agora, a frente superampla é importante para ganhar a eleição e, em caso de vitória, para governar.

Nada é perfeito, lamentavelmente. A Arca do Lula está ficando meio lotada e, vamos ser francos, com passageiros, às vezes, bem duvidosos. Tudo bem, queremos nos ver livres desse desastre chamado Bolsonaro. Com algumas semanas pela frente até o segundo turno, todos sabemos que a vitória não está garantida. O próprio Lula vinha avisando, há meses, que seria uma eleição muito difícil. Em almoço do qual participei, faz alguns meses, um dos integrantes mais proeminentes da Arca comentava com realismo que disputar a reeleição na condição de presidente, governador ou prefeito é “uma covardia”. Afirmação que dispensa explicações, mas que, apesar disso, vinha sendo esquecido pelos que davam a derrota de Bolsonaro como certa. Outros, a exemplo do professor Marcos Nobre, da Unicamp, advertiam desde 2021 que, apesar de tudo, Bolsonaro chegaria competitivo às eleições.

A Arca do Lula é tudo, menos excludente. Como coração de mãe, cabe todo mundo. Entra qualquer um, desde que comprometido com o antibolsonarismo. A frente ampla define-se, portanto, fundamentalmente pelo negativo. Um problema é que dentro da Arca temos a presença expressiva da direita ou centro-direita tradicional, órfã da terceira via. Sem querer pecar pelo excesso de didatismo, lembro que a política brasileira se divide, grosso modo, em quatro grandes blocos: 1. A centro-esquerda, liderada por Lula e pelo PT. 2. A direita ou centro-direita tradicional, que inclui a Faria Lima e a mídia corporativa e vinha sendo representada, sobretudo, pelo PSDB, hoje em frangalhos. 3. A direita ou centro-direita fisiológica, que inclui o Centrão e outros partidos ideologicamente indefinidos, em geral de base regional. 4. A extrema-direita bolsonarista, fascista ou protofascista, representada no Congresso pela bancada BBB, da Bíblia, do Boi e da Bala. Existem outras forças, mas são periféricas. O quarto bloco, antes inexpressivo no Brasil, saiu do armário com força em 2018.

A Arca de Lula inclui a maior parte do segundo bloco. O terceiro está, hoje, majoritariamente com o quarto, mas pode desembarcar a qualquer momento e pleitear ingresso na Arca, dependendo, claro, do resultado do segundo turno. Com as pressões incansáveis de integrantes do segundo bloco, a Arca está adernando perigosamente para a direita.

De novo, na conjuntura dramática em que vivemos, só um radical louco pensaria em hostilizá-los ou rejeitá-los. São legítimos passageiros da Arca. Afinal, ela é ou não é coração de mãe? E digo mais: se ainda houver algum financista, algum neoliberal, algum fisiológico, até mesmo algum um ex-bolsonarista disposto a embarcar tardiamente, que seja recebido aos beijos e abraços.

No entanto, leitor, sem ilusões! E com uma dose saudável de hipocrisia, aquela mesma que La Rochefoucauld dizia ser a homenagem do vício à virtude. Os neocompanheiros, por mais simpáticos, por mais dedicados ao discurso da justiça social e da democracia, nem sempre são autênticos. De uma maneira geral, digamos diplomaticamente, autenticidade não é o seu forte. Também são discípulos de La Rochefoucauld.

Obviamente, o peso do segundo bloco aumentou com o resultado do primeiro turno. O primeiro precisa, mais que nunca, do seu apoio, e de parte do terceiro, para derrotar o quarto. Política também é a arte de engolir sapos. Por outro lado, leitor, convenhamos: de que adianta ganhar as eleições e perder o governo? Temos de ser, sim, flexíveis, sutis e até delicados. Mas, cuidado, não vamos perder a alma.

Lembrei do verso de Rimbaud: “Par ­délicatesse, j’ai perdu ma vie” (Por ­delicadeza, perdi minha vida). Não digo que possamos perder a vida, mas a alma, sim! No imediato, a luta é contra a destruição do Brasil, que será inevitável se Bolsonaro se reeleger. Mas logo em seguida a disputa será pela hegemonia na frente superampla que comporá o governo, em caso de vitória de Lula. Realismo acima de tudo, portanto.

No popular: um olho no peixe, outro no gato! •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um olho no peixe, outro no gato”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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