

Opinião
Um caminho pernicioso
A institucionalização das emendas impositivas e, agora, das emendas secretas significa a captura do orçamento da saúde pelo Parlamento


O Brasil é mesmo muito singular. Não me refiro à exuberância da natureza, à culinária ou aos elementos culturais. Trato aqui das emendas parlamentares, gambiarras originalíssimas produzidas para legalizar práticas eticamente insustentáveis. Mais especificamente, das emendas impositivas e, recentemente, das emendas secretas que, no caso da saúde, criam uma situação insustentável, injustificável e altamente perniciosa aos interesses da população.
Em 2022, o orçamento destinado para “ações e serviços públicos de saúde” (ASPS) é de 150,6 bilhões de reais, uma diminuição de 28,5 bilhões de reais em relação ao executado em 2021, embora ainda precisemos lidar com a Covid-19, suas sequelas e a repressão de demanda observada em diversas áreas nos últimos dois anos. Perder tantos recursos já seria, por si, um grave problema.
Pois bem, do valor total destinado às ASPS, 16,9 bilhões de reais serão direcionados sem qualquer articulação com o Plano Nacional de Saúde ou as prioridades definidas pelo Conselho Nacional de Saúde e pela Comissão Intergestores Tripartite, onde têm assento os gestores das três esferas responsáveis pela gestão do SUS. Isso equivale a 11,2% do orçamento federal da saúde.
Do valor total destinado este ano, 8,7 bilhões de reais são de emendas impositivas, ou seja, obrigatórias, que devem ser pagas pelo Ministério da Saúde a partir das indicações de deputados e senadores, inclusive da oposição, ainda que os que apoiam o governo tenham toda sorte de facilidades.
Essa prática de emendas impositivas, uma vez que as não obrigatórias sempre existiram para pequenas correções da peça orçamentária, é um legado do Centrão, sob o comando de Eduardo Cunha, e está em vigor desde 2014, ainda que inicialmente os valores fossem bem menores e correspondessem a 3% do orçamento federal da saúde.
Quando fui Ministro da Saúde (2014-2015), procuramos criar medidas estruturantes, como oferecer aos parlamentares um cardápio de investimentos previamente pactuado entre os gestores do SUS para alocação das emendas, a partir de prioridades definidas nas 438 regiões de saúde.
Buscávamos impedir que a destinação desses recursos, que é obrigatória, tivesse um caráter desorganizador do SUS. Não é incomum que sejam usados para construção de hospitais e outros serviços ou para comprar equipamentos médicos em lugares onde não são necessários. Ou sem a adequada previsão do impacto no custeio que inevitavelmente causarão a partir da sua inauguração. Seria uma forma, ainda, de exercer uma fiscalização, já que más práticas são frequentemente identificadas por órgãos de controle.
A partir do governo Bolsonaro e sua rendição ao Centrão, as coisas se agravaram ainda mais. A aplicação de 8,1 bilhões de reais em 2022 será decidida pelo relator do orçamento, conferindo a um parlamentar, orientado pela cúpula do Congresso, um poder inacreditável de aliciamento de convicções em troca de toda ordem de interesses.
Assim, as emendas passaram de 3% da Lei Orçamentária Anual de 2014 para 11% em 2022. De acordo com o economista Bruno Moretti, da assessoria do Senado Federal, “as emendas consomem o piso da saúde que está congelado pela Emenda do Teto. Ou seja, não procede a tese de que as emendas parlamentares ampliam recursos do SUS”.
O próximo golpe vem aí. A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023 deve tornar impositiva a emenda de relator, a um custo de 18 bilhões a 19 bilhões de reais, a depender do IPCA. Teremos, então, instituído no País um semiparlamentarismo orçamentário. Tal interferência do Parlamento sobre o orçamento não tem paralelo com o que fazem os países da OCDE. Nenhum país adota esse sistema, sobretudo considerando o peso das emendas no orçamento.
A institucionalização das emendas impositivas e, agora, as do relator (e secretas), explica, em grande parte, a força política do Centrão, a quem se submeteu Bolsonaro, que dele sempre fez parte. Essa lógica está consolidada como regra de negociação de sustentação política e área de negócios escusos para uma parcela dos envolvidos. Será uma pedra no sapato do próximo presidente. Para piorar, a prática de ampliação do poder das emendas, inclusive impositivas, foi rapidamente copiada por grande parte das Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais.
A captura do orçamento público expressa o ataque do neoliberalismo aos direitos sociais. É uma distorção que representa um grave ônus para o uso adequado dos recursos que, como tem sido noticiado, também se apresentam como cenas de delinquência explícita para assalto aos cofres públicos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um caminho pernicioso”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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