Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Um balaio de frutas das quatro estações

Sigo lavando cada fruta com água e sabão e depois secando com um pano de prato as mãos úmidas de uma canção

Carambola. Imagem: Michael Siebers/Pixabay
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Ainda pequeno, eu tinha medo de maçã. Na sala de catecismo tinha um pôster na parede mostrando Eva oferecendo uma maçã ao Adão. Enquanto aprendia o Pai Nosso, a Ave Maria e a Salve Rainha, ficava com os olhos fixos naquela gravura, os dois seminus no meio do mato e uma serpente enrolada nos galhos. Tinha medo da maçã e da serpente. Depois passou. Passei a gostar das maçãs argentinas, vermelhas e cheirosas, embrulhadas num papel de seda azul, uma a uma, aquelas que um dia Caetano encontrou poesia ali. Muitos anos depois, convivia com elas diariamente. Seis horas da manhã eu estava no Mercado Central de Belo Horizonte para comprar uma, duas caixas. Elas eram embaladas bem apertadinhas e me impressionava a cor branca da madeira que vinha dos Pampas e aquele cheiro maravilhoso que se espalhava dentro da Rural Willys a caminho da Savassi, onde eu tinha um carrinho de frutas que funcionava 24 horas, no coração da Praça Diogo de Vasconcelos. Era início dos anos 1970 e foi assim que juntei dinheiro para ir-me embora do Brasil, fugir daqueles hipócritas disfarçados rondando ao redor. Vendia, além das maçãs, peras, bananas, mexericas, mangas, abacaxis, morangos e, na época do Natal, pêssegos, ameixas e uvas Niágara encaixotadas. Hoje, tantos anos depois, continuo convivendo com as maçãs. Lavando uma a uma com água e sabão e depois secando com um pano de prato as mãos úmidas de uma canção.

Fui juntando coisas, juntando, juntando e acabei criando um museu de mim mesmo. Hoje vivo rodeado de memórias e olha que só guardei as boas, nada de ruim. Tenho um gato de porcelana bordado com motivos turcos pechinchado no Grande Bazar de Istambul, como tenho um coelhinho de plástico do América Mineiro, presente do Chico Regueira. Tenho três garrafas de cerveja – Marx, Trotsky e Rosa – que acredito eu já saíram de circulação. Tenho brinquedos antigos, um disco voador de 1960, uma placa metálica na parede onde se lê: Hippies Use Side Door. Tenho um pôster do Yuri Gagarin, um rádio de 1940, um Buda comprado na Feira da Ladra em Lisboa, um azulejo pintado pelo Peticov, um altar do Universo em Desencanto com a imagem do Tim Maia, tenho coisas que nem eu mesmo acredito que tenho. Quem mais teria um elefante enferrujado que veio lá da Fundação José Saramago? Quem teria uma caixa com sete cds da Yoko Ono? Quem teria um cachorrinho verde de porcelana comprado num antiquário em Havana? Não faz muito tempo, passei uma temporada num vilarejo no interior da Grécia, onde no meu inventário constava apenas um laptop. Acordava, olhava pela janela e via o mar azul, lá embaixo. Um pé de limão siciliano no quintal e um outro de abricós carregado, na casa do vizinho. Eu não tinha bibelôs, nenhuma recordação. Além do laptop, agora estou lembrando, tinha também o livro 1968, da Ariana Fallaci, e um livrinho chamado 101 motivos para ser de esquerda, ambos em italiano. Estava vazio em Vryses e me sentia provisório ali. Hoje morro de saudade e queria viver provisório assim para o resto da vida. Vazio, mas tão bonito quanto uma obra de Carlo Benvenutto, onde se vê apenas uma cadeira, uma mesa com uma toalha de algodão e três ovos. Nada mais.

Geralmente é no domingo que lavo as frutas que chegaram do supermercado. Isso desde as águas de março, quando o vírus chegou por aqui. Nos primeiros dias deixava tudo dentro de uma bacia por uns vinte minutos, com água e algumas gotas de Hidrosteril. Depois que vi na televisão que era preciso esfregar uma a uma com água e sabão, compramos uma barra de sabão de coco e começamos a esfregar cada laranja, cada papaia, cada limão siciliano, cada manga espada, cada carambola. Esfrego pensando nas goiabas com bicho que engolia, nas jabuticabas que colhia e ia estalando na boca, uma a uma, uma bacia. Pensando no jambo cheiroso do vizinho que roubávamos, nas ameixas amarelas que, quando cresci, viraram nêspera. Nas pitangas e nas amoras que deixavam roxa a calçada da Rua Grão Mogol. Vou juntando as frutas ao lado da pia, formando numa pirâmide que me lembra vagamente as fruteiras de Paul Cezanne que certamente não lavava as frutas naquele 1900. Elas vão formando um colorido bonito predominantemente amarelo com tons de vermelho e laranja e com toque de verde da manga espada. Tão bonitas que outro dia fotografei, legendei moro num país tropical e postei no Face. Os morangos e os kiwis lavo rapidamente. Porosos não podem ficar de molho, vi também na televisão. Todo domingo é assim. Gasto parte do meu tempo lavando frutas, sentindo o cheiro do sabão de coco, mas principalmente das carambolas, as mais cheirosas.

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