Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

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Ulysses e a democracia

Ele compreendeu o arranjo oligárquico que controla a vida dos brasileiros

O presidente da Assembléia Nacional Constituinte receava o “vício antidemocrático” dos donos do poder, habituados a manejar o arbítrio - Imagem: Célio Azevedo/Agência Senado
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Domingo, 30 de outubro, encerrada a apuração e certificada a vitória de Luiz Inácio, recebo uma mensagem do meu amigo de muitas jornadas, Luciano Coutinho. A mensagem trazia uma foto de ­Ulysses Guimarães, o Senhor Diretas, exibindo, sorridente, a Constituição de 1988.

A foto espicaçou-me a memória. Em um domingo paulistano, logo após a derrota das eleições diretas, Ulysses reuniu mais uma vez em sua casa os que estiveram com ele no combate persistente contra a ditadura.

Vou invocar aqui o testemunho dos meus amigos João Manuel Cardoso de Mello, Luciano Coutinho e José ­Gregori. Ulysses levantou-se e respondeu aos que imaginavam convencê-lo das conveniências da disputa no Colégio Eleitoral. Dentre tantas, guardei as frases que provocaram lágrimas em sua mulher, dona Mora, sentada num sofá mais distante da pequena aglomeração de companheiros de seu marido. “Para o Colégio Eleitoral eu não vou. Seria uma facada nas costas do povo que se mobilizou nas praças e nas ruas para participar dos comícios pelas Diretas Já. Digo a vocês, a conquista da democracia não será completa sem a manifestação da vontade popular.”

Em 1992, os caras-pintadas acorreram às ruas para pedir o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. Pouco antes, em longa conversa comigo na presença do jornalista Roberto ­Müller Filho, Ulysses Guimarães desfiou temores e preocupações diante do iminente impeachment do presidente eleito pelo voto popular.

Os receios do Senhor Diretas concentravam-se no “vício antidemocrático” que contamina os donos do poder, habituados a manejar os cordéis do arbítrio a seu talante e ao sabor de seus interesses. A cavalgada do mandonismo sempre ocorre no lombo dos corcéis chicoteados por aqueles que exercem a liberdade de opressão travestida de liberdade de expressão, sempre recheada de chicanas e mentiras.

Às vésperas da morte trágica, Ulysses compreendeu que a campanha popular pelas eleições diretas e a Constituição ainda sofriam o assédio insidioso, persistente, do velho e sempre renovado arranjo oligárquico que controla a vida dos brasileiros.

Reafirmo, em seguida, o que disse em colunas anteriores: nas almas dos impichadores da democracia brasileira, os de hoje mais que os de sempre, estão entrelaçadas as brutalidades do atraso oligárquico e a hipermodernidade da barbárie “internética” que intoxica o ambiente social com sua nuvem de ignorâncias.

As baixarias revelam, sobretudo, indigência cultural e desprezo absoluto pelos valores do liberalismo político, o que nos coloca na rabeira do processo civilizador ou, se quiserem, na vanguarda do movimento de retorno à idade da pedra lascada.

Esse sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo central do Estado moderno

Jair Bolsonaro e seus apoiadores definiram claramente suas concepções das instituições e das prerrogativas dos ocupantes de funções públicas. “Eu administro a República com a minha família, como se fosse minha casa.” Esta é a síntese do pensamento bolsonarista, de seus acólitos e servidores. Paulo Guedes e sua trupe empenhavam-se na privatização da ­Eletrobras, Petrobras e Bancos Públicos. Bolsonaro & Família foram mais expeditos: tentaram realizar a privatização do Estado.

Essa tentativa bolsonarista violou reiteradamente o princípio da impessoalidade na administração da coisa pública e burlou a constituição de um sistema de poderes e garantias fundados na lei. Parece banal, mas é necessário repetir: é a consciência do dever legal que garante legitimidade à ação dos agentes do Estado, jamais a invocação narcisista e autorreferida às próprias virtudes e crenças. Esse sistema de poderes e garantias ancorado na lei é o núcleo central do Estado moderno. É isto que o obriga a punir no exercício do monopólio da violência as tentativas de opressão arbitrária de um indivíduo sobre o Outro.

Ao observar os caminhoneiros perpetrarem mais uma tentativa de assassinato dos valores democráticos e republicanos, com a cumplicidade indisfarçada do diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, não posso deixar de registrar o reiterado propósito de apoderamento ­privado do Estado pelas forças bolsonaristas.

Assim, não posso negar ao leitor as palavras de Ulysses Guimarães na sessão de promulgação da Carta Magna: “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: Mudar para vencer! Muda, Brasil!”

Há quem diga que o Brasil, ao promulgar a Constituição de 1988, entrou tardia e timidamente no clube dos países que apostaram na ampliação dos direitos e deveres da cidadania moderna. Submetidos ao longo de mais de quatro séculos à dialética do obscurecimento que regia as relações de poder numa sociedade marcada pelo vezo colonial-escravocrata e, depois da Independência, pelo coronelato, os brasileiros subalternos deram na Constituinte passos importantes para alcançar os direitos do indivíduo moderno.

Para encerrar, relembro passagens do documento “Esperança e Mudança”, que o PMDB de Ulysses Guimarães ofereceu à sociedade brasileira nos  idos de 1982:

“Democracia é Estado de Direito, liberdade de pensamento e de organização popular, o respeito à autonomia dos movimentos sociais repousa na existência de partidos políticos sólidos. Democracia significa voto direto e livre, significa restauração da dignidade e das prerrogativas do Congresso e do Poder Judiciário, significa liberdade e autonomia sindical, significa liberdade de informação e acesso democrático aos meios de comunicação de massa. Democracia implica democratização das estruturas do Estado, implica resgatar a soberania nacional, implica redistribuição da renda, criação de empregos e bem-estar social crescente. A Assembleia Nacional Constituinte haverá de ser o berço de tudo isso – o berço da Democracia –, o berço pacífico e representativo dos anseios do povo”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Ulysses e a democracia”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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