Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Tudo é passageiro

No ônibus, uns três olharam assustados para aquele cara do século passado que ainda lê jornal de papel, ou melhor, lê jornal

Foto: Alberto Villas/Arquivo Pessoal
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Atrasado para a consulta com a nutricionista, enfiei rapidamente algumas poucas coisas na sacola de pano da Strand Books: carteira, álcool gel, uma máscara 3M, a pastinha de controle médico, um guarda-chuva dobrável e só. Não, não saio com o celular nas ruas de São Paulo.

Abri a porta e vi no capacho a Folha de segunda, cuja manchete anunciava que o bolsonarismo demonstrou força e o presidente irá para o segundo turno com Lula. Já tinha visto online, mas mesmo assim enfiei o jornal dentro da sacola, tomando o cuidado para não amassar a pastinha que controla o meu peso.

Dei sorte, o ônibus Socorro não demorou mais que três minutos. Veio meio cheio, mas ninguém de pé. Pedi licença e sentei na janela, ao lado de um pintor de paredes, talvez. Ele tinha a camisa azul marinho de brim, ligeiramente respingada de tinta branca.

No ponto seguinte, entrou mais gente, muitas pessoas, parecem amigas. Foi aí que enfiei a mão na sacola de pano e tirei a Folha. Abrir o jornal foi difícil. Dobrei várias vezes até deixar na posição de ler a capa da Ilustrada.

Todos ou quase todos estavam de olho nos seus celulares. Uns três olharam assustados para aquele cara do século passado que ainda lê jornal de papel, ou melhor, lê jornal.

Ninguém que olhou se interessou pela manchete principal, ninguém olhou de soslaio as notícias que a Folha trazia, nenhuma. Pareciam desinteressados.

Difícil ler jornal no ônibus. Sempre fiz isso, mas agora senti que estava cada vez mais complicado. Será que os ônibus diminuíram, ficaram mais apertados?

Dobrei em quatro a primeira página e fui lendo:

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Fiquei observando aquele mapa 48 por cento vermelho, 43 por cento marrom, cor de merda. Não se se foi de propósito, sacanagem da Folha.

Uma japonesa entrou e perguntou ao motorista alguma coisa meio em português, meio em japonês. Entendi apenas Hospital São Camilo.

Enfiei o jornal na sacola, levantei, dei o sinal e fiquei esperando o ônibus parar no meu ponto. Assim do alto dá pra ver o que as pessoas estão vendo no celular.

Dois entretidos num joguinho colorido, uma numa página de salmos, uma jovem via um filme, não sei qual. Uma senhora olhava sapatos e preços numa loja virtual. Uma outra enviava mensagens e respondia imediatamente.

Desci. O ônibus seguiu o seu caminho levando umas 30 pessoas, aparentemente desinteressadas pelo que aconteceu no domingo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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