Opinião
Trump e o protecionismo
Ele se guia pela visão encantada do livre comércio como um amigo secreto entre nações, rota certa para a ruína


“A América vai ser grande outra vez” ou “Vamos devolver os empregos aos americanos.” Em suas arengas eleitoreiras, Trump prometia impor uma tarifa de 35% sobre produtos chineses, além de promover a volta das empresas americanas (des)localizadas no México. Na reta final do pleito deste ano, o candidato Republicano ameaçou impor tarifas de 60% sobre as importações e acenou com sanções aos países que desafiarem o poder do dólar.
“Morte por China. Esse é o risco real que todos nós enfrentamos enquanto a nação mais populosa e a caminho de se tornar a maior economia do mundo está rapidamente se tornando no mais eficiente assassino do planeta.”
É nesse tom que Peter Navarro, professor de Economia e Política Pública na Universidade da Califórnia, ex-diretor do National Trade Council no mandato de Trump, inaugura o primeiro capítulo do seu livro Death by China.
Para o antigo tutor do comércio americano, as campeãs nacionais chinesas apoiadas pelo Estado, com a potente combinação de mercantilismo e protecionismo, configuram armas de destruição de empregos americanos.
Suas posições registram a inviabilidade da visão encantada do livre-comércio, como um grande amigo-secreto entre nações, onde cada um leva o que produz de melhor.
Navarro desanca a teoria das vantagens comparativas: “Se você deseja descobrir o que não é o livre-comércio, tente ler qualquer um dos livros-textos de economia que os nossos filhos estudam nas faculdades hoje em dia. Seus olhos vão rolar, sua cabeça vai girar, e seu estômago vai torcer pelo divórcio desses textos com a realidade da arena do comércio global. É como se Gandhi tivesse substituído Clausewitz e Sun Tzu em cursos de estratégias militares… apesar da abundância de evidências contrárias, esses livros-textos continuam a ensinar as virtudes do livre-comércio e dos assim chamados ‘ganhos do comércio de que todos nós deveríamos nos beneficiar’”.
Ele inculpa “oito práticas comerciais chinesas injustas” pela queda na participação da manufatura no produto doméstico, de 25% para 10%, cabendo protagonismo para a taxa de câmbio “espertamente manipulada”, que equivale a uma tarifa uniforme de importação e um subsídio à exportação. “Se o dinheiro é a raiz de todo mal, então a manipulação chinesa da sua moeda, o yuan, é a raiz central de tudo que há de errado na relação comercial entre Estados Unidos e China.”
As palavras do ex-conselheiro de Comércio Exterior do governo americano reiteram a longa tradição protecionista dos Estados Unidos. Sugiro uma olhadela nas tarifas americanas que vigoraram ao longo do século XIX, sobretudo depois da Guerra Civil. O economista Bradford Delong, em seu livro Concrete Economics, demonstra que, entre 1860 e 1879, no apogeu do prestígio do livre-comércio, os Estados Unidos teimavam em permanecer como o país mais protecionista do mundo.
No susto da Grande Depressão dos anos 30 do século passado, a boca torta revelou o uso do cachimbo protecionista: a lei americana Smoot-Hawley elevou brutalmente as tarifas. Em seguida, a Inglaterra abandonou o padrão-ouro em 1931, e os Estados Unidos caem fora em 1993.
As tarifas e as desvalorizações competitivas produziram uma brutal contração do comércio internacional. A deflação de preços das commodities e produtos industrializados comprovou o óbvio: se todos tentam desvalorizar, ninguém consegue, ainda que alguns consigam mais que os outros.
Na ausência de uma coordenação global, a tentativa de defender o mercado doméstico dos efeitos da queda do volume de comércio culmina no prejuízo geral e irrestrito. As reações protecionistas são antes de tudo políticas: respondem às pressões internas nascidas do desemprego e da queda dos rendimentos das famílias.
Em agosto de 2014, a organização social Netroots abrigou em Detroit uma conferência sobre a precária situação da cidade. Outrora conhecida como “Motor City”, a Cidade dos Automóveis, em tradução livre, Detroit está praticamente reduzida às cascas dos edifícios abandonados. Os que neles habitavam buscaram novas paragens.
Então vice-presidente, Joe Biden foi o orador principal do Netroots 2014. Em sua fala, Biden advogou um programa de investimentos parrudos em infraestrutura, com destinação das encomendas às indústrias localizadas em território nacional americano.
Em suas exortações, Biden foi acompanhado pelo republicano Dan Kildee, originário da antes industrializada cidade de Flint, um caso dramático de desestruturação socioeconômica promovida pelo sucateamento de indústrias e pelo desemprego, as pragas que avassalam o Meio-Oeste americano. Questionado a respeito do destino dos desempregados de Flint, o economista de Harvard, Nicholas Gregory Mankiw, respondeu: “Mudem-se”. •
Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Trump e o protecionismo’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.