

Opinião
Trinta anos depois, o Brasil de Tieta permanece vivo
Enquanto me distraio com personagens que povoaram a minha infância, sou levada a refletir sobre o País de agora, escreve Luana Tolentino


Escrevo este texto no momento em que o Brasil ultrapassa a casa de 250 mil mortos pela Covid-19. Preocupação, cansaço, luto e desalento são alguns dos sentimentos que invadem o coração e o pensamento dos brasileiros.
Nesse período de pandemia e suspensão de parte do cotidiano, vi amigos adoecerem, perderem o emprego, travando lutas contra a morte. Vi também muita gente tentando sobreviver ao home office, às preocupações diárias, à saudade e ao isolamento. Para amenizar a dureza dos dias, uns aprenderam a cozinhar, outros começaram a escrever, alguns voltaram a fazer terapia. Busquei saída na meditação, na ioga, na escrita, em passeios de bicicleta na orla da Lagoa da Pampulha. Ufa! Não tem sido fácil.
Eu que não sou dada a vícios, recentemente, adquiri um: não passo um só dia sem assistir à novela Tieta, inspirada no romance do escritor baiano Jorge Amado. Exibida pela TV Globo entre 1989 e 1990, desde que foi disponibilizada no Globoplay, é uma das mais acessadas na plataforma digital da emissora da família Marinho. Um verdadeiro sucesso.
Protagonizada pela atriz Betty Faria, em cada capítulo, tenho a sensação gostosa de estar num revival, me divirto, já que quando foi exibida pela primeira vez eu tinha apenas cinco anos. Por alguns instantes, esqueço de toda tragédia, de todo caos. Geralmente, vejo à noite, no horário do Jornal Nacional, na tentativa de driblar as notícias ruins. É como se eu pudesse fugir do que se passa lá fora.
Enquanto me distraio com personagens que povoaram a minha infância e seguem na memória de muitos brasileiros, sou levada a refletir sobre o Brasil de agora. Trinta anos depois, o Brasil de Tieta permanece vivo.
Com todo respeito à atriz Joana Fomm, Perpétua, vilã a quem ela deu vida de forma magistral, me faz lembrar de alguns políticos e religiosos. Por trás da figura pudica, defensora da igreja, da família e dos “princípios cristãos”, esconde uma mulher que faz uso da fé e do sagrado para enganar, humilhar, perseguir, ameaçar e obter vantagens. Uma mulher que combate a “depravação”, mas no seu íntimo guarda segredos que fariam até a turma de Woodstock corar. Olho, ouço a irmã mais velha de Tieta e vejo um pouco da deputada federal e pastora Flordelis e do Padre Robson, que de acordo com denúncias do Ministério Público de Goiás é o responsável por comandar uma “organização criminosa que se utilizava de associações e empresas para realizar apropriações indébitas, falsidades ideológicas e lavagem de capitais em benefício próprio”.
As maldades e a ira de Perpétua eram direcionadas constantemente para Iraci, jovem que trabalhava como doméstica em sua casa. Perpétua grita, agride, interdita cada vez que a moça tenta dizer algo. Apesar dos direitos recém-adquiridos pelas profissionais do lar, o Brasil que sente gozo em explorar mulheres pobres, sobretudo negras, persiste.
Nos últimos meses vieram à tona casos de trabalhadoras que foram submetidas a condições análogas à escravidão. Destes, certamente o de Madalena Giordano, que prestou serviços a uma família do interior de Minas Gerais durante 38 anos sem direito a salários ou férias é o mais emblemático. Além de ter a humanidade negada, Madalena se tornou vítima de um golpe. Em um casamento forjado com um tio dos Milagres Rigueira, a pensão a que ela tinha direito ficava nas mãos de seus algozes. Embora reduzir alguém à condição semelhante a de um escravizado seja crime imprescritível, ninguém foi preso.
O Brasil de Artur da Tapitanga, interpretado pelo ator Ary Fontoura, infelizmente permanece vivo entre nós. Prefeito da fictícia Santana do Agreste, era o homem mais poderoso da cidade, que diante de qualquer ameaça não rogava em dizer: “Pode me denunciar! Quero ver quem vai ter coragem de me prender!”. Em sua casa, o coronel mantinha “rolinhas”, meninas que ele explorava e de quem abusava sexualmente. Somente em 2019, o Brasil teve mais de 17 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, com o agravante de que as políticas públicas e os órgãos que visam a combater esse tipo de crime estão sendo completamente sucateados por um Ministério cheio de fundamentalistas.
Permanece vivo o Brasil de Zé Esteves, fruto da interpretação primorosa do saudoso Sebastião Vasconcelos. Um Brasil violento, machista e patriarcal, que coloca o País na lista dos que mais matam mulheres no mundo. Permanece vivo também o Brasil de Modesto Pires, vivido pelo já falecido Armando Bógus. Em troca de vantagens financeiras, o homem mais rico do Agreste Baiano era capaz de entregar aos interesses do capital a vizinha Mangue Seco, área de proteção ambiental. Não é difícil saber quem atualmente é a própria encarnação de Modesto Pires.
Para não dizer que não falei de flores, apesar de tudo, entre muitos de nós permanecem o senso de justiça de Tieta e a generosidade de dona Milu, interpretada lindamente pela atriz Miriam Pires. Tomando de empréstimo o bordão que a eternizou, saber quando finalmente iremos superar tantas mazelas e os vícios que corroem nossa sociedade é um grande “mistéééériooo”.
Já escrevi demais. Volto para a minha Tieta. Em tempos tão duros, preciso e mereço.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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