

Opinião
Tributo ao pioneiro
Mário Juruna carregava seu gravador para mostrar ao povo brasileiro que a palavra do branco pouco valia. Pela primeira vez, fez os povos indígenas serem ouvidos no Parlamento
Em 17 de julho, completamos 21 anos sem Mário Juruna, líder do povo Xavante e primeiro indígena eleito para ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados. A cada dia de trabalho no Congresso Nacional, carrego a sua força e memória. Não seria possível imaginar o nosso reflorestar da política sem olhar para o passado e reverenciar a história dele, que foi eleito ainda nos anos 1980, sempre agarrado ao seu gravador. As palavras têm o poder de flechas, sabia ele.
Quando falo que cheguei ao Congresso para assinar, e não para assassinar direitos, levo comigo os mais de 1,5 milhão de indígenas brasileiros, mas sempre me lembro de Mário Juruna e Joênia Wapichana. O primeiro indígena eleito e a primeira mulher indígena do Parlamento. Pelo meu estado, também sou a primeira mulher indígena eleita, mas trago a certeza de que haverá um momento em que não seremos mais os primeiros. E para honrar a memória e contar a nossa história a partir da nossa visão, neste mês protocolamos um projeto, o PCR 91/2023, que atribui ao Plenário 12 do Anexo II da Câmara dos Deputados o nome de Mário Juruna.
O Plenário 12 hoje abriga a nossa Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais. Com ela, sou a primeira mulher indígena a presidir uma comissão na história da Câmara Federal e também carrego a honra de ser a primeira parlamentar do PSOL a presidir uma comissão. Mais uma vez, falamos aqui de sermos os pioneiros. Mais uma vez, com a certeza de que é a hora do nosso chamado e de mudarmos essa história.
Desde a fundação do Parlamento brasileiro, demoramos quase dois séculos para eleger mulheres indígenas, quase 200 anos para ter o nosso novo e ancestral Ministério dos Povos Indígenas. Isto é o que chamo de racismo da ausência. Por muito tempo, não só tentaram nos exterminar, nos violentar, como também tentaram nos apagar da história e dos espaços de poder. Resistimos pela força do cantar e do cocar. Reflorestaremos com essa mesma força. E é contra essas ausências que levo, hoje, o nome de Juruna mais uma vez para o Congresso Nacional.
Escrevemos a nossa história com as nossas tradições, preservando as nossas línguas e com a força da oralidade e da palavra falada. Não deixamos que a colonização nos dizimasse. E é exatamente entendendo a força da palavra falada, que o gravador de Juruna mostrou ao povo que de quase nada valia a palavra do branco. Insistem no peso das canetas, na força do etnocídio legislado, mas esquecem que o nosso cantar e o nosso falar se fazem no chão da luta.
Ao percorrer Brasília com seu gravador, registrando suas conversas e mostrando que não havia esforço político para mudar a situação dos povos indígenas, Juruna transpôs barreiras e, pela primeira vez, nos fez ouvir do alto da tribuna. E é também por isso que sempre canto ao subir na tribuna. Nessa casa de senhores engravatados, em que muito se fala e pouco se escuta, eles não poderão ensurdecer diante do nosso canto.
Se insistem em assassinar os nossos direitos, seguiremos usando a nossa voz para ecoar pedidos por justiça e reparação. Seguiremos usando as nossas palavras para dizer que a saída para barrar as mudanças climáticas está nas nossas tecnologias sociais e ancestrais. Se insistem no passar da boiada, seguiremos passando com os nossos cocares.
Ocupar a política é levar uma luta coletiva, uma luta que vem dos territórios. Nomear um plenário com o nome de Mário Juruna é usar os símbolos dos brancos para reforçar a ideia de que chegamos para ficar. É lembrar, como disse a nossa parentíssima ministra Sônia Guajajara no dia de sua posse, que não haverá nunca mais um Brasil sem nós. •
Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.
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